terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Suficiência Formal das Escrituras (Pais do Século V) - Parte 4

João Crisóstomo (347 – 407)

Qual é o significado desse versículo: "No sétimo dia descansou de toda a obra que tinha feito"? Observe como a Sagrada Escritura narra tudo de modo humano, mesmo sem nos considerar. Quero dizer, não teria sido possível para nós entender de qualquer outra forma. (Homilia sobre o Gênesis 1-17, Homilia 10.16)

De qualquer forma, no caso de querer fazer uma exibição da estupidez dessas pessoas, nós também nos encontramos induzidos a proferir declarações indecorosas, vamos ter acabado com sua loucura e desviar-se de tal idiotice; sigamos a direção da Sagrada Escritura na interpretação que faz de si mesmo, desde que não fique completamente absorvido com a concretude das palavras, mas perceba que nossas limitações são a razão para a concretude da linguagem. Sentidos humanos, você vê, nunca seriam capazes de compreender o que é dito se eles não tiverem o benefício de tão grande condescendência. (Homilia sobre o Gênesis 1-17, Homilia 13.8)

Crisóstomo diz que a Escritura foi feita de modo humano para ser entendida. Também afirma um dos aspectos da Sola Scriptura: “A Escritura interpreta a si mesma”.

Veja a extensão da consideração que a Sagrada Escritura emprega também aqui, descrevendo tudo de uma forma humana: não é que existem comportas no céu, mas sim que ela descreve tudo em termos habituais para nós, como se quisesse dizer que o Senhor simplesmente deu uma direção e imediatamente as águas obedeceram à ordem de seu Criador, caiu dos céus em todos os lados e inundou o mundo inteiro. (Homilia sobre o Gênesis 18-45, Homilia 25.10)

Crisóstomo fez uso repetido da palavra precisão (akribeia, ἀκρίβεια) se referindo à Sagrada Escritura. Uma das frases preferidas de Crisóstomo era "a precisão da Sagrada Escritura." Para ele, esta é uma característica distintiva do texto bíblico. Ver, por exemplo, FC, Vol. 82, Homilias sobre Gênesis 18-45, 18,3, 9, 20; 20,5; 21.8, 11; 22,5, 6; 23,4, 8; 24,5; 25.10, 20; 26,15; 27,16, 17, 23; 29,22; 30,4; 31.18; 33,4; 35.4, 8, 9; 36,12; 38,6; 39.11; 43,3 (Washington, DC: The Catholic University of America Press, 1990), em que encontramos esta frase ou o equivalente cerca de 28 vezes: pp. 4, 9, 15, 38, 56, 59, 71, 90, 93, 107 , 131, 139, 155, 173, 174, 179, 213, 222, 249, 278, 306, 309, 310, 334, 359, 381-382, 437; Ver também Vol. 74, Homilias sobre Gênesis 1-17, Homilia 7,9-10, 13,5, 13, 15,11 (Washington, DC: The Catholic University of America Press, 1986)., Pp 96, 171, 175, 200; FC, Vol. 87, Homilias sobre o Gênesis 46-67, Homilias 49,3, 55..5 (Washington, DC: The Catholic University of America Press, 1992)., Pp 43, 109; e Robert Charles Hill, São João Crisóstomo Comentário aos Salmos (Brookline: Santo Imprensa ortodoxa Cross, 1998), Vol. 1, pp. 80, 132, 158, 282, 304-305, 343. Por exemplo, "Veja a sabedoria do autor inspirado, que fala de tudo com precisão," e "Note a precisão do autor inspirado." Em suma, este princípio da ἀκρίβεια é uma característica da Sagrada Escritura a qual Crisóstomo alude várias vezes e usa em todos os seus escritos para descrever o texto sagrado.

Não te detenha, eu suplico, para que outro te ensine; tu tens as palavras de Deus. Nenhum homem te ensina como elas. Escutai, suplico-vos, todos os que são cuidadosos com esta vida, a adquirir livros que serão medicamentos para a alma (...) se não quereis todos os outros, obtenha pelo menos o Novo Testamento, as Epístolas Apostólica, os Atos, os Evangelhos, como seus professores constantes. Se a dor te suceder, mergulhe neles como num baú de medicamentos; reconforte-se ali da tua tribulação, seja perda, ou morte, ou privação das relações; ou melhor, não mergulhe neles meramente, mas leve-os inteiramente a ti; mantenha-nos na tua mente. Esta é a causa de todos os males, o não conhecimento das Escrituras. (NPNF1: Vol. XIII, Homilias Sobre a Epístola de São Paulo aos Colossenses, Homilia 9)

Crisóstomo afirma que a Escritura é a melhor professora. Não havia no pensamento desse pai espaço para um magistério infalível sem o qual os homens não poderiam compreender a palavra escrita de Deus.

Para que uma pessoa precisa do discurso? Esta necessidade surge da nossa preguiça. Há necessidade de uma homilia? Todas as coisas que estão nas divinas Escrituras são claras e abertas; as coisas necessárias são todas simples. (NPNF1: Vol. XIII, Homilias Sobre a Segunda Epístola de Paulo aos Tessalonicenses, Homilia III, Comentário sobre 2 Tessalonicenses 1:9, 10)

A necessidade de professores nos ensinando através de seus discursos e homílias é fruto de preguiça e não de uma obscuridade da Escritura, pois elas são claras em todas as coisas necessárias.

Também por esta razão, ele não escondeu seu ensino em névoa e escuridão, como fizeram aqueles que lançaram obscuridade sobre o discurso, como uma espécie de véu. Mas as doutrinas deste homem são mais claras do que os raios de sol, por isso elas têm sido manifestadas para todos os homens em todo o mundo. Pois ele não ensinou como Pitágoras, ordenando àqueles que viessem a ele para que ficassem em silêncio por cinco anos, nem ele inventou fábulas que definem o universo consistindo em números; mas jogou fora todo esse lixo diabólico, e difundiu tal simplicidade através de suas palavras, que tudo que ele disse foi simples, e não apenas para os sábios, mas também para mulheres e jovens. Ele foi convencido de que as palavras eram verdadeiras e proveitosas para todos que dessem ouvidos a elas. (NPNF1: Vol. XIV, Homilias sobre o Evangelho de São João, Homilia 2.5)

A mensagem do Evangelho de João seria tão simples que qualquer um poderia compreendê-la, mesmo pessoas que não fossem consideradas sábias.

Além disso, mesmo que alguém seja muito pobre, está em seu poder, por meio da leitura contínua das Sagradas Escrituras, que tem lugar aqui, que não seja ignorante a respeito de nada contido nelas. (NPNF1: Vol. XIV, Homilias sobre o Evangelho de São João, Homilia 11.1)

Uma pessoa poderia por meio da leitura contínua das Sagradas Escrituras compreender tudo que está contido nelas. A implicação direta é que as Escrituras são compreensíveis para o leitor assíduo.

"Mas como", dizem eles, "se não compreendermos as coisas que lemos?" Mesmo se você não compreender o conteúdo, a sua santificação em alto grau resulta dela. No entanto, é impossível que todas estas coisas sejam igualmente mal interpretadas; pois foi por esta razão que a graça do Espírito Santo ordenou que publicanos, pescadores, fabricantes de tendas, pastores, pastores de cabras e homens não instruídos e iletrados compusessem esses livros, para que nenhum homem iletrado oferecesse pretexto; a fim de que as coisas fossem facilmente compreendidas por todos: o artesão, o criado, a viúva, sim, o mais iletrado de todos os homens deve beneficiar e ser beneficiado pela leitura. Pois não é por vanglória, como os homens do mundo, mas para a salvação dos ouvintes, que eles compuseram esses escritos, que, desde o início, foram revestidos com o dom do Espírito Santo.

Pois aqueles filósofos, retóricos e analistas, não se esforçando para o bem comum, mas tendo em vista o seu próprio renome, se dissessem alguma coisa útil, estavam envolvidas em sua obscuridade, como em uma nuvem. Mas os apóstolos e profetas sempre fizeram exatamente o oposto; eles, como os instrutores do mundo, tornaram tudo o que eles entregaram claro para todos os homens, a fim de que cada um, mesmo sem ajuda, pode ser capaz de aprender pela mera leitura. Assim também o profeta disse: "Todos serão ensinados por Deus", (Isa. Liv.13). "E nunca mais dirão, cada um ao seu próximo, conheça o Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior," (Jer. Xxxi. 34). São Paulo também diz: "E eu, irmãos, quando fui ter convosco, não fui com sublimidade de palavras ou de sabedoria, anunciando-vos o mistério de Deus" (1 Cor. Ii. 1). E, novamente, "A minha palavra e a minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração do Espírito e de poder," (1 Cor. Ii. 4). E, novamente, "Nós falamos a sabedoria", diz-se, "mas não a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam," (1 Cor. Ii. 6). Para quem o evangelho não é simples? Quem escuta, "Bem-aventurados os mansos; Bem-aventurados os misericordiosos; bem-aventurados os puros de coração ", e tais coisas como essas, e precisa de um professor para compreender algumas das coisas ditas?

Mas (alguém pergunta) são as partes que contem os sinais, maravilhas e histórias também claras e simples para cada um? Este é um fingimento, uma desculpa, um mero manto de ociosidade. Você não entende o conteúdo do livro? Mas como você pode entender se não está disposto a olhar com cuidado? Pegue o livro em sua mão. Leia toda a história; e, mantendo em sua mente as partes fáceis, leia com frequência as partes duvidosas e obscuras; e se não for possível, com a leitura frequente, entender o que é dito, vá para alguém mais sábio; recorra a um professor; converse com ele sobre as coisas ditas. Mostre grande vontade de aprender; então, quando Deus vê que você está usando de tal diligência, ele não vai desconsiderar sua perseverança e cuidado; mas se nenhum ser humano pode ensinar-lhe o que você procura saber, Ele próprio irá revelar integralmente.

Lembre-se do eunuco da rainha da Etiópia. Sendo um homem de uma nação bárbara, ocupados com inúmeros cuidados, e rodeado por todos os lados por vários negócios, era incapaz de entender o que leu. Ainda assim como ele estava sentado na carruagem, estava lendo. Se ele mostrou tal diligência em uma viagem, pense em quão diligente ele deveria ter sido em casa; se, enquanto na estrada não deixou a oportunidade passar sem leitura, muito mais deve este ter sido o caso quando sentado em sua casa; quando ele não compreendeu totalmente as coisas que leu, não cessou de leitura, muito mais ele não para de ler quando capaz de entender. Para mostrar que não entendia as coisas que havia lido, ouça o que Filipe lhe disse: "Entendes tu o que lês?" (Atos 8:30). Ao ouvir esta pergunta, não mostrou provocação ou vergonha, mas confessou sua ignorância, e disse: "Como poderei entender, se alguém não me ensina" (ver 31). Desde então, enquanto ele não tinha nenhum homem para guiá-lo, estava lendo assim; por esta razão rapidamente recebeu um instrutor. Deus sabia da sua vontade, Ele reconheceu seu zelo, e imediatamente enviou-lhe um professor.

Mas você diz, Filipe não está presente conosco agora. Ainda assim, o Espírito que se movia em Filipe está presente conosco. Amados, não negligenciemos nossa salvação! "Todas estas coisas são escritas para nossa admoestação, para quem são chegados os fins dos séculos" (1 Cor. 10:11). A leitura das Escrituras é uma grande salvaguarda contra o pecado; a ignorância das Escrituras é um grande precipício e abismo profundo; não saber nada das Escrituras é uma grande traição da nossa salvação. Essa ignorância é a causa de heresias; esta é que conduz à vida dissoluta; este é que faz todas as coisas confusas. (F. Allen, trans., Four Discourses of Chrysostom, Chiefly on the Parable of the Rich Man and Lazarus, 3rd Sermon, §2-3 (London: Longmans, Green, Reader and Dyer, 1869), pp. 62-68. See Concionis VII, de Lazaro 3.2-3 PG 48:993-996 (Paris: J.-P. Migne, 1857-87). Cf. PG 62:485)

Talvez Calvino ou Lutero não tenham feito discurso tão forte em favor da Sola Scriptura. Crisóstomo diz que as Escrituras foram compostas por homens simples e iletrados para que o mais iletrado dos homens pudesse compreendê-la. Diferente dos filósofos, os apóstolos escrevem uma mensagem tão clara que qualquer homem, sem a necessidade de um professor, poderia entender o que foi escrito por mera leitura. Também alude o princípio reformado segundo o qual “partes mais claras lançam luz sobre partes mais obscuras da Escritura” e que se alguém não compreender algo, mas demonstrar vontade e diligência em aprender, o próprio Deus iria ensinar essa pessoa, caso nenhum professor soubesse faze-lo.

Crisóstomo ainda cita a passagem do Eunuco. Essa é utilizada pelos católicos para atacar a clareza das Escrituras, por isso precisaríamos do magistério romano dizem eles. O bispo de Constantinopla interpreta de forma diferente. Como um católico romano responderia ao fato de não termos mais Felipe ou apóstolos vivos hoje para ensinar a Escritura? Ele diria que temos o magistério infalível da Igreja Romana, esse nos guiaria à correta interpretação. Essa não foi a resposta de Crisóstomo. Para ele, apesar de não ter os apóstolos vivos, os crentes tem o Espírito Santo que poderá ensiná-los mediante o estudo da Palavra de Deus. Perceba que essa não á uma dádiva restrita aos ocupantes dos altos cargos de uma hierarquia eclesiástica, mas é para todos os crentes que buscam diligentemente estudar a Bíblia.

Diferente dos romanistas que dizem ser o livre exame das Escrituras responsável por confusões e heresias, para o pai da Igreja, era a falta de conhecimento das Escrituras a causa desses problemas.
Tendo absolvido a si mesmo de tudo isso, o homem bom “partiu de Shekim”, diz o texto, e se apressou em direção a Baithel. Agora, eu lhe convido a observar mais uma vez o cuidado de Deus com ele e a forma como a Escritura nos ensina tudo claramente. (FC, Vol. 87, Homilias sobre Genesis 46-67, Homilia 59.18 (Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1992), p. 175.)

Finalmente, se as cerimônias dos judeus tem a sua admiração, o que você tem em comum conosco? Se as cerimônias judaicas são veneráveis e grandes, as nossas são falsas. Mas se as nossas são verdadeiras, como elas são verdadeiras, as deles estão cheias de engano. Não estou falando das Escrituras. Deus me perdoe! Foram as Escrituras que me pegaram pela mão e me levaram a Cristo. (FC, Vol. 68, Discourses Against Judaizing Christians, Disc. 1.6.5 (Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1979), pp. 23-24).

Grande é o proveito das divinas Escrituras, e todo-suficiente é o auxílio que vem delas. Paulo declarou isso quando disse, "Tudo o que foi escrito outrora foi escrito para nossa admoestação para quem o fim dos séculos tem chegado, para que pela paciência e consolação das Escrituras, tenhamos esperança." (Romanos 15:4 e 1 Coríntios 10:11) Pois os oráculos divinos são um tesouro de todos os tipos de medicamentos, de modo que é indispensável para: extinguir o orgulho, aquietar o desejo de dormir, pisar aos pés o amor ao dinheiro, desprezar a dor, inspirar confiança, ganhar a paciência. A partir delas {as Escrituras} pode-se encontrar recurso abundante. (NPNF1: Vol. XIV, Homilias sobre o Evangelho de São João, Homilia 37.1)

Todo-suficiente é o auxílio das Escrituras. Ele emprega uma metáfora afirmando que a Escritura é como um tesouro de todos os medicamentos. Ou seja, não falta nada.

Por isso, suplico-vos, vamos praticar a leitura das Sagradas Escrituras com grande zelo. Esta, afinal, é a maneira de fortalecer nosso conhecimento, também, se nós formos zelosos em aplicar a nós mesmos o seu conteúdo. Quero dizer, não é possível para a pessoa que está em contato com a mensagem divina num espírito de zelo e desejo fervoroso ser vítima de negligência. Mesmo que um professor humano não venha da nossa maneira, o próprio Senhor viria do alto para iluminar nossas mentes, lançar luz sobre o nosso pensamento e agir como nosso instrutor no que temos conhecimento. Escritura diz, lembre-se: "A ninguém na terra chameis de professor." Quando, pois, tomamos um livro inspirado em nossas mãos, vamos nos concentrar, recolher os nossos pensamentos e dissipar todo o pensamento mundano, e façamos desta forma a nossa leitura com grande devoção, com grande atenção para que possamos ser capazes de ser guiado pelo Espírito Santo para a compreensão dos escritos e podermos ganhar grande proveito a partir deles. (In Genesin, Homilia XXXV, §1, PG 53:321-322; translation in FC, Vol. 82, Homilies on Genesis 18-45, Homily 35.2 (Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1990), pp. 304-305)

Uma poderosa declaração sobre a assistência do Espírito Santo para que o crente compreenda a Escritura.

Jerônimo (347-420)

Escritura fala em termos da nossa fragilidade humana os quais nós podemos mais facilmente compreender. (FC, Vol. 57, as Homilias de São Jerônimo: Vol. 2, Homilia 65 (Washington DC: The Catholic University of America Press, 1966), p. 57)

Assim como outros pais da Igreja, Jerônimo diz que as Escrituras utilizam termos que permitam a compreensão humana.

A: Esta passagem, para o ignorante e para aqueles que não estão acostumados a meditar sobre a Sagrada Escritura, que não a conhecem nem a usam, parece à primeira vista favorecer a sua opinião. Mas quando você olha para ela, a dificuldade desaparece rapidamente. Quando você comparar passagens da Escritura com as outras, de maneira que o Espírito Santo não pode parecer contradiz a si mesmo com a mudança de lugar e tempo, de acordo com o que está escrito, "o abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas", a verdade irá mostrar a si mesma, isto é, que Cristo deu um comando possível quando Ele disse: "Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito", ainda que os Apóstolos não fossem perfeitos. (NPNF2: Vol. VI, St. Jerome Against the Pelagians, Book I, §14)

Jerônimo aplica o princípio reformado de comparar a Escritura pela Escritura para elucidar uma passagem específica. Ainda afirma que a verdade se mostrará por si mesma, ou seja, sem a necessidade de uma autoridade externa que a autentique ou a extraia.

Alguns podem dizer: 'Você está forçando a Escritura, não é o que significa. "Vamos deixar a Sagrada Escritura ser sua própria intérprete (...) (FC, Vol. 48, As Homilias de São Jerônimo: Vol. 1, Sobre os Salmos, Homilia 6 (Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 1964), p. 45)

A verdade da Escritura é auto-evidente.

'Em seu registro dos povos que o Senhor disser ': nos escritos sagrados, em Sua Escritura que é lida a todos os povos, para que todos possam saber. Assim, os apóstolos escreveram; assim, o próprio Senhor tem falado, e não apenas para alguns, mas para que todos possam conhecer e compreender. Platão escreveu livros, mas não escreveu para todas as pessoas, apenas para alguns, pois há não muito mais do que dois ou três homens que o conhecem. Mas os príncipes da Igreja e os príncipes de Cristo não escreveram somente para poucos, mas para todos, sem exceção. E príncipes': os apóstolos e evangelistas. "Daqueles que nasceram nela." Nota "que tenha sido" e não "que são." Isto é para certificar de que, com exceção dos apóstolos, tudo que é dito mais tarde deve ser removido e não mais tarde conter força de autoridade. Não importa o quão santo alguém possa ter após o tempo dos apóstolos, não importa quão eloquente, ele não tem autoridade, pois 'em seu registro dos povos e príncipes o Senhor fala daqueles que nasceram nela'. (FC, Vol. 48, As Homilias de São Jerônimo: Vol. 1, Sobre os Salmos, Homilia 18 (Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 1964), pp. 142-143)

Essa é uma poderosa declaração que apoia a suficiência material e formal. Jerônimo segue o entendimento patrístico de que as Escrituras empregam linguagem simples para que todos a compreendam, não se trata de um privilégio exclusivo de algum grupo iluminado. Ele afirma a suficiência material ao dizer que tudo o que foi dito mais tarde, depois dos apóstolos, não é autoritário. Nisto, podemos incluir concílios, obras dos pais da Igreja e documentos papais. Nem o bispo de Roma a quem Jerônimo tinha alta estima era uma autoridade como a Escritura.

Alguém poderia objetar que Jerônimo estaria falando de doutrinas que os apóstolos não escreveram, mas pregaram somente oralmente. O contexto da citação se refere às Escrituras apostólicas e não menciona qualquer tradição oral. Só poderíamos ter acesso a doutrinas apostólicas orais pelo que outros autores mais tarde escreveriam, mas como esses autores não tem autoridade, eles não seriam uma fonte valida de doutrina apostólica. Não é propósito deste artigo falar sobre a suficiência material, mas cabe mencionar que Jerônimo não sustentava a tese de que doutrinas apostólicas, que devem necessariamente ser cridas pelos Cristãos, passaram adiante apenas oralmente sem constarem da Escritura.
Qual é a função dos comentaristas? Eles expõem as declarações de alguém; expressam pontos de vista em linguagem simples que foram expressas de uma forma obscura; citam as opiniões de muitos indivíduos e dizem: "Alguns interpretam esta passagem neste sentido, outros, em outro sentido"; eles tentam apoiar seu próprio entendimento e interpretação com estes testemunhos desta forma, para que o leitor prudente, depois de ler as diferentes interpretações e estudar quais desses muitos pontos de vista devem ser aceitos e quais rejeitados, julgue por si mesmo, qual é o mais correto; e, como o banqueiro especialista, rejeite a moeda falsa cunhada. (FC, Vol. 53, St. Jerônimo – Obras Polêmicas e Dogmáticas, A Apologia Contra o Livro de Rufino, LIvro I, §16 (Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1965), p. 79)

É assim que os Protestantes agem. Estudamos as Escrituras e analisamos a opinião de comentaristas qualificados. A partir da análise e do estudo, adotamos ou rejeitamos determinada posição. Jerônimo descreveu o livre exame, que os romanistas atacam com frequência. O julgamento privado é apoiado por ele.

Invoquemos o Senhor, sondemos as profundezas de seus escritos sagrados, e sejamos guiados em nossa interpretação por outros testemunhos da Sagrada Escritura. O que não pode ser sondado nas profundezas do Antigo Testamento, nós devemos penetrar e esclarecer a partir da profundidade do Novo Testamento no rugido da catarata de Deus - Seus Profetas e Apóstolos. (FC, Vol. 57, The Homilies of St. Jerome: Vol. 2, Homily 92 (Washington D.C.: The Catholic University of America Press, 1966), p. 246)

A Escritura guia nossa interpretação. O Novo Testamento esclarece o Antigo.

Aqui somos ensinados, que os leigos deveriam ter a palavra de Deus, não só suficientemente, mas também com abundância para ensinar e aconselhar os outros. (In Epistolam Ad Colossenses, Caput III, PL30:859; translation in John Jewel, Works, The Second Portion, the Reply to Harding’s Answer (Cambridge: The Parker Society, 1848), p. 685)

Em consonância com seu apoio à suficiência formal, apoia o magistério dos leigos. Leigos, a partir do estudo das Escrituras também estão aptos a ensinar.

Agostinho (354-430)

Pois tal é a profundidade das Escrituras cristãs, que mesmo se eu fosse tentar estudá-las e nada mais fizesse desde a infância até a velhice, com o máximo de tempo livre, e com o mais incansável zelo e talentos maiores do que eu tenho, eu ainda estaria diariamente progredindo em descobrir seus tesouros. Não que exista grande dificuldade em chegar nelas para saber as coisas necessárias à salvação, mas quando alguém aceita essas verdades com a fé que é indispensável para uma vida de piedade e retidão, então muitas coisas que estão veladas sob múltiplas sombras de mistério restam a serem investigadas por aqueles que estão avançando no estudo. (NPNF1: Vol. I, Epístolas de Santo Agostinho, Epístola 137, Chapter 1, §3)

O que é necessário para a salvação não é difícil de ser compreendido. Agostinho falou isso num contexto em que exalta a profundidade da Escritura.

Considere, por outro lado, o estilo em que a Sagrada Escritura é composta, como é acessível a todos os homens, apesar de seus mistérios mais profundos serem penetráveis para poucos. As verdades claras que contem declaram na linguagem simples e amigável os corações, tanto de ignorantes como de eruditos, até mesmo as verdades que ela revela em símbolos não estabelecidos em sentenças firmes e imponentes, que uma mente um pouco preguiçosa e sem instrução pode encolher de se aproximar, como um homem pobre se encolhe na presença dos ricos. Porém, pela condescendência de seu estilo, ele convida a todos, não só para serem alimentados com a verdade que é simples, mas também para ser exercida pela verdade que está escondida, tendo as partes simples e obscuras a mesma verdade. O que é facilmente compreensível deve gerar saciedade no leitor, a mesma verdade estando em outro lugar mais obscuramente expressa torna-se novamente desejada e, sendo desejada, de alguma forma está investida de uma nova atratividade, e, portanto, é recebida com prazer pelo coração. Por esses meios mentes rebeldes são corrigidas, mentes fracas são nutridas, e mentes fortes são preenchidas com alegria, de tal forma que é proveitosa para todos. Esta doutrina não tem nenhum inimigo a não ser o homem que, estando em erro, é ignorante de sua utilidade incomparável, ou, sendo espiritualmente doente, é avesso ao seu poder de cura. (NPNF1: Vol. I, Letters of St. Augustine, Letter 137, Chapter 5, §18. See also FC, Vol. 20, Saint Augustine Letters, 137. Addressed to Volusian (412 AD) (New York: Fathers of the Church, Inc., 1953), p. 34)

Agostinho expressa o princípio reformado segundo o qual partes obscuras da Escritura são esclarecidas por partes mais claras. A tradição reformada não nega que há partes mais obscuras, porém, além das porções mais claras lançarem luz sob as mais escuras, tudo o que é necessário para salvação está claramente expresso.

Pois dentre as coisas que são claramente estabelecidas nas Escrituras, encontram-se todas as questões que dizem respeito à fé e a maneira de viver, a saber, esperança e amor, de que falei no livro anterior. (NPNF1: Vol. II, A Doutrina Cristã, Livro II, Capítulo 9)

Uma declaração curta que expressa suficiência material e formal. Tudo o que diz respeito à fé e a maneira de viver estão na Escritura de forma clara.

E enquanto cada homem pode encontrar lá tudo o que ele aprendeu de útil em outro lugar, ele vai encontrar lá [nas Escrituras] em maior abundância coisas que não se encontram em nenhum outro lugar, mas que pode ser aprendidas apenas na sublimidade e simplicidade maravilhosas das Escrituras. (NPNF1: Vol. II, A Doutrina Cristã, Livro II, Capítulo 42)

Mais uma citação que engloba suficiência material e formal.

Como eu disse um pouco antes, quando estes homens são contrariados pelos testemunhos claros da Escritura, e não podem escapar de sua força, eles declaram que a passagem é espúria. A declaração só mostra a sua aversão à verdade e sua obstinação no erro. (NPNF1: Vol. IV, Resposta a Fausto o Maniqueu, Livro XI, §2)

Romanistas costumam afirmar que se as Escrituras fossem claras, não haveria tantas heresias ou interpretações divergentes. O bispo de Hipona ilustra a falaciosidade desse raciocínio ao demonstrar que a heresia pode nascer da aversão pela verdade mesmo quando o testemunho bíblico é claro.

Desta forma, os fatos da história cristã iriam provar a verdade da profecia e a profecia provaria as reivindicações de Cristo. Chame de fantasia, se não for realmente o caso de que os homens de todo o mundo têm sido levados e agora são levados a acreditarem em Cristo lendo esses livros. (NPNF1: Vol. IV, Resposta a Fausto o Maniqueu, Livro XVI, §20)

Os livros inspirados por si mesmos levam pessoas a Cristo. Se eles fossem tão obscuros, como poderiam fazer isso?

(...) Ele também confirmou por meio das Escrituras o coração dos que creem; porque ele olhou a frente para nós, que viríamos depois; vendo que nEle não temos nada que possamos tocar com as mãos, mas temos o que podemos ler. Pois, se aqueles acreditaram só porque podiam tocá-lo, o que devemos fazer? Agora, Cristo subiu aos céus; Ele não virá salvar no final, mas julgar os vivos e os mortos. Pelo que devemos acreditar, mas qual era a Sua vontade para aqueles que o viram que deveriam ser confirmados? Ele abriu as Escrituras e mostrou-lhes que convinha que Cristo padecesse, e que todas as coisas se cumprissem conforme o que estava escrito dele na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Ele adotou em seu discurso todo o antigo texto das Escrituras. Tudo o que há naquelas antigas Escrituras fala de Cristo; mas somente se ela encontrar ouvidos. Ele também "abriu o entendimento para que pudessem compreender as Escrituras". Por isso devemos também orar por isso, que Ele abra nosso entendimento. (NPNF1: Vol. VII, Dez Homílias sobre a Primeira Epístola de João, Homilia 2, 1 John 2:12-17, §1)

O ponto é que os discípulos que encontraram Jesus ressurreto tinham a vantagem de poder tocá-lo e vê-lo com os próprios olhos. Nós não temos essa possibilidade, e ainda assim precisamos crer. O bispo de Hipona aponta que mesmo sendo visto a olho nu, Cristo quis confirmar a fé dos discípulos mostrando que todo o antigo testamento testemunhava a respeito dele. Da mesma forma, devemos crer Nele a partir do testemunho das Escrituras. A suficiência material está implícita, não podemos ver Cristo ou tocar Nele, mas podemos ler sobre ele. Se Agostinho acreditasse que poderíamos saber algo sobre o Evangelho de Cristo, não contido na Escritura, a partir de fontes extra-bíblicas, teria mencionado nesse contexto. Tudo o que aponta é o que podemos ler a partir dos livros inspirados. Também diz que Cristo abriu o entendimento dos discípulos para que compreendessem as Escrituras, e esse privilégio é extensível a nós, por isso devemos orar a Deus pedindo entendimento. É precisamente a exposição do ensino reformado sobre a iluminação do Espírito Santo sobre os crentes.

Agora, quem é que se submete a divina Escritura, se não aquele que a lê ou ouve piamente, submetendo a ela como de autoridade suprema; de modo que o que ele entende ele não rejeita por causa disso, sentindo que ela seja contrária aos seus pecados, mas ama sendo repreendido por ela, e se alegra de que seus males não são poupados até que sejam curados; e por isso que, mesmo em relação ao que lhe parece obscuro ou absurdo, ele, portanto, não levanta contradições ou controversas, mas ora para que ele possa entender, entretanto lembrando que a boa vontade e reverência há de se manifestar no sentido de uma tão grande autoridade? (Do Sermão do Monte, Livro I, 11)

Como na citação anterior, devemos orar buscando entendimento.

Isso acontece quando os céus são vistos como obras do dedo de Deus, isto é, quando as escrituras foram trazidas para a compreensão dos bebês e são compreendidas. Eles elevam estas crianças até as mesmas coisas das quais eles contam com tal convicção; mas as crianças estão agora bem nutridas e reforçadas para escalar as alturas e compreender as coisas eternas, através da humildade da fé enraizada em uma história que tem sido trabalhado dentro do tempo. Esses céus, isto é, aqueles livros, são efetivamente as obras dos dedos de Deus, pois foi pela operação do Espírito Santo nos santos que foram escritas. Aqueles que buscavam sua própria glória, ao invés da salvação da humanidade falavam sem o Espírito Santo, no qual estão as profundezas da misericórdia de Deus. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., As Obras de Santo Agostinho, Parte 3, Vol. 15, trans. Maria Boulding, O.S.B., Exposição dos Salmos, Salmos 1-32, Salmo 8.8 (Hyde Park: New City Press, 2000), p. 133)

Se até crianças em toda a sua simplicidade podem compreender as Escrituras, a implicação é que as Escrituras são perspicazes.

Quando o apóstolo disse: Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que você recebe de Deus, e que não sois de vós mesmos? Por você ter sido comprado por preço excelente, ele imediatamente continua a dizer, glorifica a Deus, então, em seu corpo (1 Coríntios 6:19-20). Ele mostrou com clareza absoluta que o Espírito Santo é Deus e que ele deveria ser glorificado em nosso corpo como se estivesse em seu templo. O apóstolo Pedro disse a Ananias, você se atreveu a mentir para o Espírito Santo? E para mostrar que o Espírito Santo é Deus, ele disse: Você não mentiu aos homens, mas a Deus (Atos 5:3-4). (John E. Rotelle, O.S.A., ed., As Obras de Santo Agostinho, Arianismo e outras Heresias, Resposta para Maximus o Ariano, Livro II:XXI.1, Parte 1, Vol. 18, trans. Roland J. Teske, S.J. (Hyde Park: New City Press, 1995), p. 304)

Agostinho afirma que a divindade do Espírito Santo é uma doutrina facilmente extraída da Bíblia. Isto contrasta com o argumento comum dos romanistas de que a trindade é uma doutrina obscura na Escritura, que só foi elucidada graças à tradição. Isso, quando não dizem que a trindade sequer consta da Bíblia. Para os defensores da doutrina trinitária como Agostinho e Atanásio, a trindade foi claramente ensinada nos livros sagrados.

Você exagera “quão difícil é o conhecimento das escrituras sagradas“, afirmando que “é adequado apenas para poucos eruditos (...) (John E. Rotelle, O.S.A., ed., As Obras de Santo Agostinho, Resposta aos Pelagianos, II, Resposta a Juliano, Livro V:2, Parte 1, Vol. 24, trans. Roland J. Teske, S.J. (Hyde Park: New City Press, 1998), p. 432)

Quem afirmava uma posição similar ao catolicismo romano? Era Agostinho ou o herege? Ele denuncia a atitude do herege de atribuir obscuridade à Escritura.

Mas onde o assunto é óbvio, não devemos adicionar nossa interpretação do significado da divina Escritura, pois isso não é feito por ignorância humana, mas por orgulho perverso. (Ibid., p. 436)

Esta, afinal, é a razão pela qual um jovem corrige seu modo de vida: porque ele medita sobre as palavras de Deus como ele deveria meditar sobre elas, ele as observa, porque ele medita sobre elas, e vive corretamente porque as observa. Esta, então, é a razão para corrigir seu modo de vida: porque observa as palavras de Deus. (Ibid., p. 528)

A Escritura por si mesma, mediante a meditação, é suficiente para corrigir o modo de vida de alguém. Agostinho entende que a busca sincera de um crente na Palavra de Deus faz com que mude de vida. A implicação é a suficiência formal. Se as Escrituras só podem ser corretamente compreendidas com a mediação do magistério romano, a consequência é que a simples meditação sobre a Bíblia diretamente não poderia trazer os efeitos descritos.

Nossos volumes são colocados à venda em público; a luz nunca precisa corar. Deixe-os comprá-los, lê-los e acreditar neles; ou então comprá-los, lê-los, tirar sarro deles. Essas Escrituras sabem como prender as pessoas culpadas que os leem e não acreditam. (John E. Rotelle, OSA, ed., As Obras de Santo Agostinho, Sermões Recém-Descobertos, Parte 3, Vol. 11, trans. Edmund Hill, OP, Sermão 198.20 (Hyde Park: New City Press, 1997) pp. 195-196)

As Escrituras tornam culpadas as pessoas que as leem e não acreditam. Se Deus nos deu um texto obscuro de difícil compreensão, porque Ele culparia aqueles que não acreditam? Não estava acessível a elas sequer a correta compreensão. Apenas na perspectiva reformada, as palavras de Agostinho fariam sentido.

Você de fato tenta obscurecer as luzes das Sagradas Escrituras que brilham com infalível verdade pela complexidade de seus argumentos malignos. Afinal, o que é mais claro do que o que eu disse: Os seres humanos tornaram-se como a vaidade; seus dias passam como uma sombra (Sl 144: 4)? Isso certamente não teria acontecido, se tivessem permanecido na semelhança de Deus, na qual eles foram criados. O que é mais clara do que a declaração: Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão trazidos à vida (1 Co 15:22)? O que é mais clara do que as palavras: Quem, afinal, é limpo da sujeira? Nem mesmo uma criança cuja vida durou um único dia na Terra (Jb 14: 4-5 LXX)? E há muitas outras passagens que tenta envolver na escuridão e torcer para o seu significado perverso por sua tagarelice vazia. (John E. Rotelle, Op. Cit., Vol. 25, trans. Roland J. Teske, S.J. (Hyde Park: New City Press, 1999), p. 58)

Agostinho está atacando Juliano o pelagiano. As Sagradas Letras eram claras ao expressar a necessidade da graça e a natureza corrompida do homem. Quem tenta dizer ao contrário é Juliano, que faz isto para validar a heresia pelagiana. O romanismo pode receber a mesma acusação. Eles descrevem a Bíblia como tão nebulosa de forma a pavimentar o caminho para a aceitação das doutrinas não bíblicas.

Por conta disso, ele grita, Miserável homem que eu sou, quem me livrará do corpo desta morte? (Rm 7:24). E você fecha os olhos para a verdade perfeitamente clara e explica seu lamento, não como é evidente para todos, mas como lhe agrada, quando você diz que Quem me livrará do corpo desta morte? (Rm 7:24) significa: "Quem vai me libertar da culpa do meus próprios pecados que cometi?" Ele disse, eu faço o mal que eu não tenho vontade de fazer (Rm 7:19), e você diz: "os pecados que eu cometi." (John E. Rotelle, O.S.A., ed., As Obras de Santo Agostinho, Resposta aos Pelagianos III, Obra Não Terminada em Resposta a Juliano, Livro I:65, Part 1, Vol. 25, trans. Roland J. Teske, S.J. (Hyde Park: New City Press, 1999), p. 95)

A verdade defendida pelo bispo de Hipona era clara e evidente a todos. Agostinho, em sua luta contra as heresias pelagiana e ariana, nunca apela a autoridade do bispo de Roma como infalível para dirimir a questão. Ele enfrenta o embate no campo da exegese bíblica.

A pessoa que lê algum escrito em voz alta para outros ouvintes obviamente sabe o que está pronunciando, enquanto aquele que ensina as pessoas em classes de alfabetização faz isso para que também eles possam ler. Cada um deles, da mesma maneira, está entregando o que receberam. Da mesma forma, aqueles que explicam ao público o que eles entendem das Escrituras estão, por assim dizer, realizando o cargo de leitor e pronunciando letras que conhecem, enquanto aqueles que estabelecem regras sobre como elas devem ser entendidas são como a pessoa que alfabetiza, que dá as regras, isto é, sobre como ler. Então, assim como a pessoa que sabe ler não requer outro leitor quando ele se apodera de um volume, para dizer o que está escrito nele, da mesma forma, aqueles que compreenderam as regras que estão se esforçando para passar irão reter um conhecimento destas regras, como letras, quando se depararem com qualquer coisa obscura nos livros sagrados, e não vão exigir que outra pessoa descubra por eles o que está envolto em obscuridade. Em vez disso, seguindo-se certas pistas, eles serão capazes de obter o significado oculto de uma passagem sem qualquer erro, ou, no mínimo, evitar cair em qualquer opinião absurdamente equivocada. (John E. Rotelle, O.S.A., ed., As Obras de Santo Agostinho, Parte I, Vol. 11, trans. Edmund Hill, O.P., De Doctrina Christiana, Prologue §9 (New York: New City Press, 1996), p. 104)

Se alguém domina as ferramentas de interpretação do texto bíblico, não precisará de outra pessoa para lhe dizer o significado do texto obscuro. Essa citação vem da obra “Da Doutrina Cristã”. Nessa, o bispo ensina as ferramentas exegéticas para interpretação do texto inspirado, nunca fazendo menção a existência de qualquer magistério infalível. O leitor da Bíblia pode descobrir o verdadeiro sentido até mesmo das passagens obscuras utilizando o método correto de interpretação.

Portanto, eu tenho nesta carta, que chegou a você, mostrado por passagens da Sagrada Escritura, que você pode examinar por si mesmo, que nossas boas obras e piedosas orações não poderiam existir em nós, a menos que tenhamos recebido tudo a partir dele. (Epístola 214:4)

O destinatário da carta seria capaz de examinar as passagens e chegar a uma conclusão correta.

Daí provém que a divina Escritura, a qual socorre a tão grandes males da vontade humana, tendo sido originada de uma só língua que lhe permitia propagar-se oportunamente pelo orbe da terra, foi divulgada por toda a parte, em diversidade de línguas, conforme os intérpretes. Os que a leem não desejam encontrar nela mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram e desse modo chegar a conhecer a vontade de Deus, segundo a qual creem que esses homens compuseram. (A Doutrina Cristã, Livro II – Sobre os sinais a serem interpretados nas Escrituras, 6)

Os intérpretes são os que leem. Ele parte do pressuposto de que as pessoas que leem são capazes de conhecer a vontade de Deus a partir do que foi escrito.

Quem escruta os divinos oráculos deve esforçar-se por chegar ao pensamento do autor, por cujo intermédio o Espírito Santo redigiu a Escritura. (A Doutrina Cristã, Livro III – Sobre as dificuldades a serem dissipadas nas Escrituras, 38)

Essa declaração não faria sentido se a Escritura não fosse perspicaz.

Essas e coisas semelhantes que eu deveria ou ter dito a eles ou considerado comigo mesmo, pois até então, suplicando a Deus com todas as minhas entranhas, por assim dizer, e examinando as Escrituras tão atentamente quanto possível, eu deveria talvez ter sido capaz, ou de dizer tais coisas ou pensá-las, tanto quanto era necessário para a minha salvação. (Of Two Souls, 8)

Agostinho examinava a Bíblia livremente e encontrava nela tudo o que era necessário para a sua salvação.

Pois sempre que surge uma pergunta sobre um assunto extraordinariamente obscuro, no qual nenhum auxílio pode ser prestado por claras e certas provas da Sagrada Escritura, a presunção do homem deve conter-se; nem deve tentar qualquer coisa definitiva, inclinando-se para os lados. Mesmo assim, na Sagrada Escritura, que é a mais clara autoridade, nunca surgiu um ponto em que algum homem poderia ser ignorante ao ponto de pôr em risco a salvação que foi prometida a ele. (On Merit and the Forgiveness of Sins, and the Baptism of Infants, Livro II, 59)

O Espírito Santo dispôs a Escritura Sagrada de uma forma tão magnificente e proveitosa que, por meio das claras passagens, ele sacia a fome, e por meio das passagens obscuras ele evita a aversão. Porque dificilmente alguma coisa provém das passagens obscuras, mas o que é afirmado em outra parte é mais claro. (Agostinho, citado em Pieper, Christian Dogmatics, p. 324)

Tudo o que é necessário para a salvação é claro.

O leitor decida qual dessas interpretações é aquela que lhe parece a mais provável. (Sermão 295)

O contexto desta citação é a posição de Agostinho sobre quem era a pedra em Mateus 16:18. Ele mudou de posição, passando a interpretar a pedra como sendo Cristo e não Pedro. Depois de argumentar que Cristo era a pedra, ele pede que o leitor escolha a posição que pareça mais coerente. É uma afirmação que pressupõe o livre exame das Escrituras.

Pois não foi outro senão a questão da graça de Deus que fez pessoas de nenhum entendimento pensar que o apóstolo Paulo prescreve a nós como uma regra: "Vamos fazer o mal para que venha o bem”. É em referência a esses que o Apóstolo Pedro escreve em sua segunda epístola: “Portanto, amados, enquanto esperam estas coisas, empenhem-se para serem encontrados por ele em paz, imaculados e inculpáveis. Tenham em mente que a paciência de nosso Senhor significa salvação, como também o nosso amado irmão Paulo lhes escreveu, com a sabedoria que Deus lhe deu. Ele escreve da mesma forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem, como também o fazem com as demais Escrituras, para a própria destruição deles”. Tome muito cuidado, então, com estas terríveis palavras do grande Apóstolo; e quando sente que não entende, coloque sua fé na palavra inspirada de Deus, e acredite que a vontade do homem é livre e que há também a graça de Deus. Sem tal ajuda, o livre arbítrio do homem não pode nem ser direcionado a Deus, nem fazer qualquer progresso em Deus. E o que você acredita piamente, reze para que possa ter uma compreensão sábia disso.

Agostinho cita 2 Pedro 3:14-16. Essa passagem é utilizada pelos papistas como prova da obscuridade da Escritura. Agostinho acreditava que Pedro se referia ao ensino compatibilista de Paulo segundo o qual a vontade humana é livre, ainda assim, o homem precisa da graça de Deus para fazer o bem. Pedro não disse que os ensinamentos de Paulo eram enigmáticos, mas que a razão humana tinha dificuldade de compreender como essas duas realidades podiam ser verdadeiras. Não seria difícil compreender o ensino do apóstolo em si, o que seria difícil é conciliar duas afirmações aparentemente contraditórias. 

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