terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Suficiência Formal das Escrituras (A Posição Reformada e o Ensino Bíblico) - Parte 1

Esta será uma série de cinco artigos que teve como base o trabalho do apologista protestante Turrentinfan contido aqui. Porém, não se trata de uma tradução integral dos artigos. Algumas citações foram adicionadas e outros argumentos e citações bíblicas foram incluídos.


A posição reformada

A principal diferença entre a teologia protestante e católica é a questão da autoridade. Os protestantes acreditam que a Escritura é a única regra infalível de fé para a Igreja. A Escritura tem algumas qualidades que a tornam única e superior a qualquer outra autoridade ou regra de fé. Elas são inspiradas por Deus, infalíveis e suficientes, sendo a autoridade final em qualquer controvérsia doutrinária.

A Igreja Romana concorda que a Escritura é inspirada e infalível, mas não concorda que seja a única regra infalível de Fé (há também a tradição e o magistério) ou que seja suficiente. Mas em que sentido a Bíblia é insuficiente para os católicos? Essa é uma pergunta que o suposto magistério infalível ainda não respondeu. Muitos católicos, ao debaterem com protestantes, alegam que nem todas as doutrinas podem ser extraídas da Bíblia, mas chegaram à Igreja através da tradição oral. Sob esse ponto de vista, a Escritura não é materialmente suficiente, ou seja, não possui todas as doutrinas ensinadas pelos apóstolos. Outra posição tem emergido nos últimos tempos, a Bíblia seria suficiente materialmente, mas não formalmente. Todas as doutrinas estariam lá, mas apenas conseguiríamos obter a correta interpretação do texto por meio do magistério infalível. Nesta série de artigos, vamos demonstrar que a Escritura se considera suficiente e que assim também testemunharam os pais da Igreja.

A Confissão de Westminster dá visão da posição reformada da suficiência das Escrituras:

VI. Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas.
II Tim. 3:15-17; Gal. 1:8; II Tess. 2:2; João 6:45; I Cor. 2:9, 10, l2; I Cor. 11:13-14.

VII. Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas.

IX. A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente.
At. 15: 15; João 5:46; II Ped. 1:20-21.

Cinco apontamentos devem ser feitos:

(1)           A confissão não diz que todas as doutrinas estão declaradas expressamente na Escritura. Algumas doutrinas podem ser obtidas por dedução;
(2)           A iluminação do Espírito Santo é necessária para a compreensão dessas verdades salvadoras;
(3)           Nem todas as passagens da Escritura são claras.  Porém, tudo o que é necessário para ser salvo é suficientemente claro;
(4)           Um texto obscuro pode ser esclarecido por outro texto mais claro;
(5)           Os cristãos, mesmos indoutos, podem fazer uso de meios ordinários para compreensão das Escrituras.

O teólogo protestante Francis Turretin assim tratou a questão:

A questão então é esta - se as Escrituras são tão claras em coisas essenciais para a salvação (não para as coisas entregues, mas quanto ao modo de entrega; não quanto ao assunto, mas ao objeto) que, sem a ajuda externa da tradição ou o juízo infalível da igreja, elas podem ser lidas e compreendidas proveitosamente pelos crentes. Os romanistas negam isso; nós afirmamos isso. (Francis Turretin, Institutos de Teologia Elenctic, trans. George Musgrave Giger, ed. James T. Dennison, Jr., Vol. 1 (Phillipsburg: P & R Publishing, 1992), 2.XVII.vii, p. 144.)

Richard Bauckham diz:

A noção de suficiência formal das Escrituras não significa que a Escritura não requer nenhuma interpretação - uma ideia que os escritores antiprotestante têm refutado com frequência e facilidade, perdendo assim o verdadeiro ponto, mas que ela não exige nenhuma interpretação normativa. A interpretação protestante da Escritura emprega todos os meios ordinários para interpretar um texto, especialmente as ferramentas que a erudição humanista tinha desenvolvido para interpretar textos antigos e respeita os pontos de vista dos teólogos e exegetas do passado como útil, mas não como guias normativos para a compreensão das Escrituras. A verdadeira diferença entre o Protestante clássico e o Católico Romano reside na rejeição protestante da opinião de que a tradição, expressa no ensinamento do Magistério, possui uma autoridade contra o qual não pode haver recurso à Escritura. Por trás dessa diferença reside, por um lado, a experiência da Reforma originária de uma redescoberta do Evangelho na Escritura para além de e em contradição com o ensinamento da Igreja contemporânea, e, por outro lado, a confiança católica romana na promessa de Deus para manter sua igreja na verdade. (See Richard Bauckham’s chapter, “Tradition In Relation To Scripture and Reason,” in Benjamin Drewery and Richard J. Bauckham, eds., Scripture, Tradition, and Reason, A Study in the Criteria of Christian Doctrine, Essays in Honour of Richard P. C. Hanson (Edinburgh: T & T Clark, 1988), p. 123.)

Ou como Bavinck manifestou-se:

A doutrina da clareza da Sagrada Escritura tem sido frequentemente mal compreendida e mal representada, tanto por protestantes como católicos. Isso não significa que as questões e assuntos tratados na Escritura não são mistérios que excedem em muito o alcance do intelecto humano. Nem afirma que a Escritura é clara em todas as suas partes, de modo que nenhuma exegese científica é necessária, ou que, também em sua doutrina da salvação, a Escritura é simples e clara para todas as pessoas, sem distinção. Significa apenas que a verdade, o conhecimento do que é necessário a todos para a salvação, embora não explicitado com igual clareza em todas as páginas da Escritura, é, no entanto, apresentado por toda a Escritura, de forma simples e inteligível que uma pessoa preocupada com a salvação de sua alma pode facilmente, por leitura pessoal e estudo, aprender e conhecer a verdade das Escrituras, sem a assistência e orientação da Igreja e do sacerdote. O caminho da salvação, não como se trata do assunto em si, mas como se trata do modo de transmissão, foi claramente estabelecido lá para o leitor desejoso de salvação. Enquanto leitor pode não entender o "como" (πῶς), o "que" (ὅτι) é claro. (Herman Bavinck, Reformada Dogmatics, Vol. 1, Prolegomena (Grand Rapids: Baker Academic, 2003), p. 477.)

O Ensino Bíblico

Jesus, pois, operou também em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. (João 20:30-31)

Essa é uma passagem usada pelos romanistas para tentar refutar a Sola Scriptura. Ao invés de refutá-la, reforça o ensino reformado. João diz que nem todos os sinais foram escritos. Ele não se refere a doutrinas necessárias para a salvação. Nem tudo foi escrito no evangelho de João. Assim, esses sinais poderiam ser encontrados em outros evangelhos.  Portanto, esse texto não aponta a insuficiência formal ou material da Escritura. O autor diz no vs. 31 o objetivo do livro – crer em Cristo e ter vida em seu nome. Temos um apóstolo afirmando que os leitores daquele evangelho poderiam através de sua mensagem crer em Cristo e ter vida em seu nome, o que implica na salvação de suas almas. A questão é como João poderia cumprir seu objetivo se seus leitores não pudessem entender seu evangelho ou se não tivesse algum ensino necessário à salvação? Se o Evangelho de João fosse materialmente incompleto ou tão obscuro que apenas um magistério infalível poderia dar-lhe a correta interpretação, o objetivo do apóstolo seria frustrado. João parte do pressuposto que seu escrito poderá ser corretamente entendido por seus leitores e que através da fé em sua mensagem, eles serão salvos.

O católico poderia responder dizendo que João se refere apenas ao seu Evangelho e não a toda a Bíblia. Primeiro, os cristãos já tinham as Escrituras hebraicas para ser lida a luz desse escrito. O Evangelho de Jesus já era pregado no Antigo Testamento pelos profetas. Obviamente, todos os outros livros do N.T não são meros acréscimos, eles ensinam a mesma mensagem de João com ênfases e clarificações diferentes. O ponto é que se somente o escrito de João era suficiente para fazer crer e ter vida em Cristo, então todo o Novo Testamento seria mais que suficiente.

Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste, e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido,
E que desde a tua meninice sabes as sagradas Escrituras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em Cristo Jesus.
Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça;
Para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra. (2 Timóteo 3:14-17)

Essa é sem dúvidas a mais clara passagem a ensinar suficiência das Escrituras.  Paulo diz que as Escrituras tornam o homem sábio para a salvação e perfeito, instruído para toda boa obra. Não há como concluir outra coisa que não seja a suficiência da Bíblia. Caso contrário, ela não tornaria o homem sábio para salvação e não poderia torna-lo apto a toda boa obra. Não há como a Escritura ser insuficiente e prover todos os benefícios citados por Paulo. Os católicos têm apresentado algumas objeções que serão respondidas abaixo:

(1)           “Paulo se refere apenas ao Antigo Testamento”. Isso não refutaria a suficiência bíblica, pois se o apóstolo considera que apenas o A.T seria suficiente, imagine então o A.T + N.T. Já nos tempos de Paulo, escritos do Novo Testamento eram considerados Escritura. Pedro já considerava as cartas de Paulo como Escritura (2Pe.3:16). Paulo citou o Evangelho de Lucas como Escritura (1Tm.5:18). Portanto, a referência no mínimo incluiria A.T + Evangelho de Lucas + Epístolas Paulinas. Devemos considerar também que Paulo não tem em mente uma lista de livros (cânon), mas a natureza da Escritura. Como a Escritura é inspirada por Deus (theopneustos), ela necessariamente terá todas estas qualificações. Por isso, a passagem aludida pode ser aplicada a todos os escritos inspirados, e por resultado, a todo o Novo Testamento. O próprio Paulo coloca os apóstolos em pé de igualdade aos Profetas do A.T (Efésios 2:20), assim como considera seus próprios escritos inspirados por Deus (1Ts. 2:13), (1Ts.4:2), (Gl.1:11,12).

(2)           “Útil não é suficiente”. Essa objeção isola o vs. 16 dos demais. Qualquer dicionário trará a definição que útil é algo que serve, que pode ser usado para alguma coisa. Então vamos ler esta definição junto com o vs. 17. A Escritura serve para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra. Em outas palavras, ao fazer uso da Escritura, o homem de Deus pode ser tornar perfeito, portanto, necessariamente é suficiente. Não nos esqueçamos do vs. 15 que é anterior ao adjetivo útil ou proveitoso. Nele, Paulo diz que a Escritura tornaria Timóteo sábio para salvação, afirmação que não está ligada ao adjetivo útil, e também implica suficiência.

(3)        “A passagem em questão pode ser usada para defender a suficiência material, mas não a formal. O cristão ainda precisaria da interpretação do magistério”. Já ouvi um apologista católico dizer que o homem de Deus pode estar equipado para toda boa obra, mas ele precisaria de instrução adicional para usar o equipamento, que seria fornecida pelo Magistério. Nessa analogia, a Escritura é o equipamento, e o magistério ensinaria a usá-lo. Para responder, precisamos observar o vs. 15 que geralmente é ignorado. Desde quanto Timóteo sabia as sagradas letras que o tornariam sábio para salvação? Desde criança. Timóteo fora ensinado por sua mãe. Uma vez que não havia nenhum magistério infalível no tempo de sua infância e obviamente sua mãe Eunice era uma intérprete falível das Sagradas Letras, Timóteo foi capaz de compreender a Escritura sem uma autoridade normativa infalível, o que comprova a suficiência formal. Sem contar que nada nesta passagem faria sentido a luz da interpretação católica. Paulo jamais orientaria Timóteo a ir direto às Escrituras, ele com certeza ensinaria a existência dos intérpretes infalíveis a quem Timóteo deveria recorrer. O contexto da carta é o cuidado com os falsos mestres, e Paulo já estava no fim de sua vida. Como Timóteo poderia proceder sem ter a presença do apóstolo? Se Paulo fosse católico romano, ele diria “ouça os sucessores de Pedro”, mas não, ele aponta as Escrituras.

Jesus e aos autores bíblicos sempre entenderam que os ouvintes e leitores poderiam compreender corretamente seus ensinamentos orais ou escritos, inclusive as Escrituras do Antigo Testamento. Há uma quantidade enorme de passagens bíblicas que atestam isso:

Quando deres ouvidos à voz do Senhor teu Deus, guardando os seus mandamentos e os seus estatutos, escritos neste livro da lei, quando te converteres ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma. Porque este mandamento, que hoje te ordeno, não te é encoberto, e tampouco está longe de ti. (Deuteronômio 30:10-11)

Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro, e ilumina os olhos. (Salmos 19:8)

Lâmpada para os meus pés é tua palavra, e luz para o meu caminho. (Salmos 119:5)

À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz neles. (Isaías 8:20)

Pois nada lhes escrevemos que vocês não sejam capazes de ler ou entender. E espero que, assim como vocês nos entenderam em parte, venham a entender plenamente que podem orgulhar-se de nós, assim como nos orgulharemos de vocês no dia do Senhor Jesus. (2 Coríntios 1:13-14)
Pois tudo o que foi escrito no passado, foi escrito para nos ensinar, de forma que, por meio da perseverança e do bom ânimo procedentes das Escrituras, mantenhamos a nossa esperança. (Romanos 15:4)

Deus deu sua palavra para ensinar, consolar, exortar. Se a Escritura não pode ser compreendida, a palavra de Deus seria ineficaz e o seu objetivo frustrado. Ao alegarem insuficiência formal, os católicos não estão apenas minando a autoridade da Escritura, estão também minando a autoridade e capacidade do próprio Deus.  Dizer que a palavra de Deus é tão obscura que só pode ser entendida com ajuda do magistério implica dizer que Deus não fez um bom trabalho e não conseguiu cumprir seu propósito ao inspirar os livros canônicos.

Escrevo-lhes estas coisas a respeito daqueles que os querem enganar. (1 João 2:26)

Escrevi-lhes estas coisas, a vocês que crêem no nome do Filho de Deus, para que vocês saibam que têm a vida eterna. (1 João 5:13)

João escreveu cartas para prevenir os crentes de falsos mestres. Se seu escrito não era claro, como poderia prevenir os cristãos da heresia?

Assim, quando vocês virem ‘o sacrilégio terrível’, do qual falou o profeta Daniel, no lugar santo — quem lê, entenda. (Mateus 24:15)

Pelo que, quando ledes, podeis entender a minha compreensão do mistério de Cristo. (Efésios 3:4)

Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim. (João 5:39)

Os bereanos eram mais nobres do que os tessalonicenses, pois receberam a mensagem com grande interesse, examinando todos os dias as Escrituras, para ver se tudo era assim mesmo. (Atos 17:11)

O exemplo dos bereanos não poderia ser mais óbvio. Eles investigaram nas Escrituras a veracidade da pregação apostólica, e tal atitude foi elogiada. Se a Bíblia não era perspicaz, e não pudesse ser compreendida sem o magistério infalível, como eles poderiam chegar à verdade examinando livremente as Escrituras? Qual católico pode submeter os ensinos dogmáticos da sua Igreja ao crivo das Escrituras? Ele não pode, sob pena de estar agindo como um protestante. Jesus também pressupunha que seus ouvintes pudessem entender o Antigo Testamento, caso contrário não o apontaria repetidamente como sua testemunha.

Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas. (Lucas 1:3-4)

Lucas não escreveu um relato obscuro ou desconexo, mas escreveu um relato ordenado que pudesse dar a Teófilo a certeza das coisas que aprendeu. Ou seja, Teófilo poderia compreender corretamente o relato sem a necessidade de interpretações adicionais.

Católicos argumentam que o magistério infalível é algo necessário, ele deve existir. Esse pressuposto não resiste à análise bíblica pelos seguintes motivos:

(1) Não havia magistério infalível na antiga aliança. Jesus responsabilizou os judeus por conhecerem, examinarem e praticarem as Escrituras (Mt 22:29). Como poderiam fazê-lo sem uma autoridade infalível que ensinasse a verdadeira interpretação das Escrituras hebraicas. Como um Judeu que viveu antes de Cristo poderia praticar as Escrituras sob o paradigma católico? Impossível. A única explicação é que as Escrituras eram autoritativas e compreensíveis independente da existência de um magistério infalível permanente.

(2) Como já demonstrado, a Escritura nos ensina a testar os mestres, incluindo ai até os próprios apóstolos, pelo critério da Escritura. Isso é algo impossível de ser feito quando há um magistério infalível estabelecido, não há instância de recurso, uma vez que o magistério define o conteúdo e interpretação da Escritura e Tradição. Se a Escritura fosse obscura como alegam os romanistas, os bereanos não seriam elogiados em sua atitude, mas repreendidos, pois estavam confiando em sua consciência privada para julgar a pregação apostólica.

(3) Não há nenhuma menção na Escritura a sucessores infalíveis dos apóstolos. Os próprios líderes que vieram após não reclamavam infalibilidade e viam o colégio apostólico como possuindo prerrogativas únicas que não poderiam ser passadas adiante, entre elas, a infalibilidade. Obviamente, os apóstolos escolheram presbíteros para cuidarem das Igrejas e pregarem a doutrina apostólica, mas nunca disseram que a Igreja estaria protegida do erro, que não haveria apostasia. Pelo contrário, o quadro futuro descrito era de apostasia crescente, e nenhum privilégio especial é dado à Igreja de Roma ou seu bispo. No capítulo 20 de Atos, é dito que Paulo reuniu os líderes da Igreja de Éfeso para se despedir. Vejamos os vs. 27-30:

Pois não deixei de proclamar-lhes toda a vontade de Deus. Cuidem de vocês mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo os colocou como bispos, para pastorearem a igreja de Deus, que ele comprou com o seu próprio sangue. Sei que, depois da minha partida, lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o rebanho. E dentre vocês mesmos se levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair os discípulos. (Atos 20:27-30)

O apóstolo estava consciente que dentre os próprios homens escolhidos diretamente por ele, surgiriam lobos ferozes que não poupariam o rebanho. Não há nenhuma promessa de imunidade à apostasia ou erros doutrinários.

A iluminação do Espírito Santo

A teologia protestante não afirma que qualquer homem tem a capacidade inata de compreender o evangelho, é necessária a ação iluminadora do Espírito Santo, pois o pecado cega o entendimento dos homens:

Eu o livrarei do seu próprio povo e dos gentios, aos quais eu o envio para abrir-lhes os olhos e convertê-los das trevas para a luz, e do poder de Satanás para Deus, a fim de que recebam o perdão dos pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim. (Atos 26:17-18)

O deus desta era cegou o entendimento dos descrentes, para que não vejam a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. (2 Coríntios 4:4)

Na verdade as mentes deles se fecharam, pois até hoje o mesmo véu permanece quando é lida a antiga aliança. Não foi retirado, porque é somente em Cristo que ele é removido. (2 Coríntios 3:14)

Uma das que ouviam era uma mulher temente a Deus chamada Lídia, vendedora de tecido de púrpura, da cidade de Tiatira. O Senhor abriu seu coração para atender à mensagem de Paulo. (Atos 16:14)

Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus. (1 Coríntios 1:18)

Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus. (1 Coríntios 1:22-24)

Os católicos também acreditam na iluminação do Espírito Santo para compreender as Escrituras, porém é restrita à hierarquia de sua Igreja. Vimos que isso vai contra a Bíblia, que mostra crentes comuns sendo iluminados e compreendendo a mensagem do Evangelho.

Passagens bíblicas utilizadas pelos Católicos

Diante de tantas passagens que apoiam a suficiência formal, os católicos apontam 3 citações que supostamente provariam o contrário:

Antes de mais nada, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, pois jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens falaram da parte de Deus, impelidos pelo Espírito Santo. (2 Pedro 1:20-21)

Católicos a usam para rechaçar o livre exame. Segundo eles, Pedro está dizendo que as profecias da Escritura não podem ser interpretadas individualmente, mas apenas pelo magistério instituído por Cristo cujo herdeiro é o magistério da Igreja de Roma.

(1) Seria contraditório ao resto das Escrituras. Os bereanos interpretaram privadamente as Escrituras para julgar a pregação dos apóstolos e foram elogiados. Se partirmos do paradigma católico, deveriam ser reprendidos.

(2) Não há nada nesta passagem ou no contexto das epístolas petrinas que apontem para um suposto magistério com a prerrogativa exclusiva de interpretar infalivelmente a palavra de Deus. Pelo contrário, na iminência de sua morte, o apóstolo não aponta para nenhum sucessor infalível, mas a mensagem por ele pregada.

(3) Pedro não está discorrendo sobre a interpretação da profecia pelo seu ouvinte. Ele fala da origem da profecia que “não PROVÉM de interpretação pessoal”. Desta forma, a “interpretação pessoal” se refere à pessoa do profeta, ou seja, a profecia não surgiu da própria interpretação ou imaginação do profeta, mas do Espírito Santo.  Tanto é que a passagem continua discorrendo sobre a origem da profecia que é divina e não humana. O contexto do capítulo corrobora essa interpretação:

De fato, não seguimos fábulas engenhosamente inventadas, quando lhes falamos a respeito do poder e da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo; pelo contrário, nós fomos testemunhas oculares da sua majestade. Ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando da suprema glória lhe foi dirigida a voz que disse: "Este é o meu filho amado, em quem me agrado". Nós mesmos ouvimos essa voz vinda do céu, quando estávamos com ele no monte santo. Assim, temos ainda mais firme a palavra dos profetas, e vocês farão bem se a ela prestarem atenção, como a uma candeia que brilha em lugar escuro, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça em seus corações. (2 Pedro 1:16-19)

O Apóstolo fala sobre a origem da fé cristã. Eles não ouviram alguém falar, mas viram, foram testemunhas direta dos fatos. Por isso, eles podiam “ter ainda mais firme a palavra dos profetas”, pois aquilo que foi anunciado se cumprira diante dos olhos dos apóstolos. A intenção de Pedro é asseverar a veracidade da profecia, não há nada sobre interpretação da profecia pelo cristão aqui. Há um paralelismo entre esta passagem e a seguinte:

Foi a respeito dessa salvação que os profetas que falaram da graça destinada a vocês investigaram e examinaram, procurando saber o tempo e as circunstâncias para os quais apontava o Espírito de Cristo que neles estava, quando lhes predisse os sofrimentos de Cristo e as glórias que se seguiriam àqueles sofrimentos. A eles foi revelado que estavam ministrando, não para si próprios, mas para vocês, quando falaram das coisas que agora lhes foram anunciadas por meio daqueles que lhes pregaram o evangelho pelo Espírito Santo enviado do céu; coisas que até os anjos anseiam observar. (1 Pedro 1:10-12)

Na primeira epístola, o apóstolo também se preocupou em demonstrar que o evangelho foi pregado pelos profetas e que eles falaram da parte de Deus e não dos homens. Façamos então uma concessão para o bem do debate. Suponhamos que se referia a interpretação das profecias e não sua origem. Qual magistério interpretou essas profecias? O magistério dos apóstolos. E onde nós encontramos as palavras deles? Na Escritura. Assim, faríamos o que todo protestante faz – utilizar o novo testamento como um intérprete das profecias do antigo. Portanto, não há como estabelecer o magistério romano a partir dessa de Pedro. Pelo contrário, essa passagem só reforça a suficiência da Escritura.

Tenham em mente que a paciência de nosso Senhor significa salvação, como também o nosso amado irmão Paulo lhes escreveu, com a sabedoria que Deus lhe deu. Ele escreve da mesma forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem, como também o fazem com as demais Escrituras, para a própria destruição deles. (2 Pedro 3:15-16)

Pedro diz que algumas coisas das epístolas de Paulo são difíceis de entender. Quem viu a introdução sobre a posição protestante da suficiência formal percebe que isso não a contraria. Nem tudo nas Escrituras é fácil de entender, mas todas as verdades necessárias para a salvação são. Partes difíceis podem ser clarificadas por outras mais fáceis que tratam do mesmo assunto. Ele não diz que alguma verdade fundamental do evangelho é de difícil compreensão nas cartas de Paulo, nem diz que todo o conteúdo de suas cartas é difícil, portanto, este versículo em nada contraria a posição reformada. E mais, por necessidade lógica, se algumas partes eram difíceis, outros seriam fáceis.

Destaca-se que as pessoas que distorciam as epístolas paulinas foram qualificadas como: ignorantes e instáveis. Elas não distorciam apenas as partes difíceis das cartas, mas também as demais Escrituras. Isso mostra que a incapacidade de entender corretamente dá-se pelos pecados dos próprios leitores, e não por uma característica intrínseca das cartas de Paulo. Por isso, a posição reformada ensina a importância da iluminação do crente.

E, correndo Filipe, ouviu que lia o profeta Isaías, e disse: Entendes tu o que lês? E ele disse: Como poderei entender, se alguém não me ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. (Atos 8:30-31)

O Eunuco nunca tinha ouvido falar de Cristo, tudo que ele tinha em mãos era a Escritura hebraica, nem sabemos se a tinha em totalidade. Os apóstolos sempre procuraram demonstrar que o evangelho já vinha sendo pregado pelos profetas, e que Cristo cumpriu as profecias. O novo testamento clarifica o antigo dando o real significado da profecia. Assim, vemos que esta passagem em nada contraria a suficiência formal, pois o Eunuco não tinha acesso à mensagem da nova aliança que explicaria essa passagem. A posição reformada afirma que há partes da bíblia difíceis de entender, mas muitas delas ou são esclarecidas por outras partes – como o novo testamento faz em relação ao antigo – ou não afetam nossa salvação. Foi justamente o que aconteceu, o Espírito Santo usou Felipe para trazer a mensagem da nova aliança que hoje está escriturada, e com esta mensagem, o Eunuco ouviu o evangelho, creu e foi salvo. Como a posição protestante defende a suficiência formal a luz de toda a revelação bíblica (A.T + N.T), não há como provar o contrário por essa passagem. Pelo contrário, ela mostra que a mensagem do A.T foi compreensível pela revelação da nova aliança o que possibilitou a salvação do Eunuco.

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