quarta-feira, 15 de junho de 2016

A Mulher de Apocalipse 12 e os Pais da Igreja


A identidade da mulher de Apocalipse 12 provoca muita polêmica. Há três respostas sobre sua identidade. Ela seria a igreja (posição que pessoalmente adoto), Israel ou Maria (posição católica romana). O papa Pio XII afirmou na bula “Munificentissimus Deus”:

Os doutores escolásticos vislumbram igualmente a assunção da Mãe de Deus não só em várias figuras do Antigo Testamento, mas também naquela mulher, revestida de sol, que o apóstolo s. João contemplou na ilha de Patmos (Ap 12, ls.). (Fonte)

A interpretação patrística mais antiga e numerosa aponta a igreja. Uma argumentação bíblica que aponta Israel pode ser vista aqui. A interpretação mais antiga vem de Hipólito. Ele escreveu no início do séc. III e era presbítero em Roma:

Sobre a tribulação da perseguição que deve cair sobre a Igreja por parte do adversário, João também assim fala: ‘E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz. (...) Pela ‘mulher vestida de sol’ ele tinha em vista a Igreja, vestida com a palavra do Pai, cujo brilho está acima do sol. E pela ‘lua debaixo de seus pés’, referiu-se ao fato dela está adornada como a lua, com a glória celeste. As palavras ‘uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça’ referem-se aos doze apóstolos por quem a Igreja foi fundada. E quanto às palavras ‘estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz’, significam que a Igreja não cessará de dar a luz de seu coração ao Verbo que é perseguido pelos descrentes do mundo. (Tratado sobre Cristo e o Anticristo, Capítulo 60 e 61)

Pouco tempo depois, ainda no terceiro século, escreveu Metódio de Olimpo:

A mulher que apareceu no céu vestida com o sol, e coroada com doze estrelas, e tendo a lua aos seus pés, e estando com o filho e dores de parto, é certamente de acordo com a interpretação mais precisa nossa mãe, ó virgens, sendo em poder distinta de seus filhos; a quem os profetas, de acordo com o aspecto de seus súditos, têm chamado algumas vezes de Jerusalém, por vezes, uma noiva, por vezes, Monte Sião, e às vezes o Templo e o Tabernáculo de Deus (...) É a Igreja cujos filhos virão a ela com toda a velocidade depois da ressurreição, correndo a ela por todos os lados. (O Banquete das Dez Virgens, Discurso 8:5)

Vitorino de Petau, também escrevendo na segunda metade do séc. III, afirmou:

A mulher vestida com o sol, que tem a lua debaixo dos seus pés e usa uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça, e tem dores em seu parto, é a antiga Igreja dos pais, profetas, santos e apóstolos, que tinha os gemidos e tormentos do seu desejo, até que viram que Cristo, o fruto do seu povo segundo a carne muito prometida a ele, carne tomada do mesmo povo (...) e a coroa de doze estrelas significa o coro dos pais, de acordo com o nascimento carnal, de quem Cristo tomou a carne. (Comentário sobre o Apocalipse do Abençoado João 12:1-2)

Nota-se que por igreja ele engloba também os crentes da antiga aliança. Também diz que a fuga da mulher para o deserto ainda não havia acontecido:

Embora, portanto, possa significar esta mulher, mostra-a depois voando quando sua prole é trazida, porque ambas as coisas não acontecem de uma só vez, pois sabemos que Cristo nasceu, mas que chegaria o tempo em que ele deveria fugir da face da serpente: sabemos que isso não aconteceu ainda. (Comentário sobre o Apocalipse do Beato João 12:16)

Se a fuga do deserto não havia acontecido e estamos falando de tempos após a morte de Maria, a mulher não poderia ser Maria.

O papa Gregório o Grande, escrevendo no séc. VI, afirmou:

Na Sagrada Escritura quando o "sol" é usado em sentido figurado, às vezes é para designar o Senhor, às vezes a perseguição ou a exibição de uma visão clara de qualquer coisa, mas também a sabedoria do sábio. Por "sol" o Senhor é tipificado, como se diz no Livro da Sabedoria, para que todos os ímpios no dia do juízo final, sabendo de sua própria condenação, venham a dizer: "Nós temos nos desviado do caminho da verdade e a luz da justiça não resplandece em nós e o sol não se levantou sobre nós" [Sabedoria 5:6]. Como se diz claramente: O raio de luz não brilhou dentro de nós. Também onde João diz: "Uma mulher vestida com o sol e a lua debaixo dos seus pés" [Apocalipse. 12:1]. Pelo "sol" é entendida a iluminação da verdade, mas pela lua, a qual diminui e é preenchida a cada mês, a mutabilidade das coisas temporais. Mas a Santa Igreja, porque é protegida com o esplendor da luz celestial, está revestida, por assim dizer, com o sol; mas, porque ela despreza todas as coisas temporais, ela tem a lua debaixo dos seus pés. (Moral, Livro 34, cap. 25)

André de Cesareia – um teólogo do séc. VI – escreveu o mais antigo comentário completo sobre o apocalipse disponível atualmente:

Apocalipse 12:1 e um grande sinal foi visto no céu: uma mulher que se vestiu do sol, e [a] lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Alguns, por um lado, tinha entendido essa mulher como sendo a Teotokos antes do nascimento divino ser conhecido por ela, (antes de ela) experimentar as coisas que aconteceriam. Mas o grande Metódio tomou como se referindo à santa Igreja, considerando estas coisas a respeito dela (a mulher) como sendo incongruentes com a geração do Mestre pela razão de que o Senhor tinha nascido muito antes (...) E na continuação: "pois cada um em Cristo é nascido mentalmente. Por isso, a Igreja está inchada e com muita dor, até que Cristo nasça e seja formado em nós, para que cada um participando de Cristo se torne Cristo." Além disso, a Igreja tem sido vestida com o Sol da Justiça e a luz da lua que brilha à noite e altera a vida secular como se a lua estivesse dominada sob os pés, e ao redor de sua cabeça (está) a coroa dos preceitos e virtudes apostólicas. Uma vez que (é) a partir da lua que substância líquida depende, o mesmo (Metódio) também diz que pela lua se entende o batismo, figurativamente chamado de "mar", que (é) por um lado a salvação para aqueles que renascem e, por outro lado ruína para os demônios. (Comentário sobre Apocalipse 12:1 - traduzido por Eugenia Constatinou)

Essa citação é interessante por que André basicamente apela à interpretação de Metódio. Trata-se de um exemplo de tradição interpretativa da igreja perfeitamente compatível com a Sola Scriptura. Um pai da igreja mais tardio apela ao mais antigo, sem considera-lo um intérprete infalível. André ainda menciona a interpretação Mariana como incompatível com a passagem. Para ele, não seria possível identificar a mulher com Maria ou a Igreja simultaneamente. Esse comentário pode parecer óbvio, mas se faz necessário porque muitos católicos procuram “salvar” a interpretação romanista dessa forma. 

Tomás de Aquino traz o comentário de Rábano Mauro – um teólogo do séc. IX – portanto não considerado um pai da igreja:

Rábano e Tertuliano, cont. Marc. IV, 13: Este número é caracterizado por muitas coisas no Antigo Testamento; pelos doze filhos de Jacó, pelos doze príncipes dos filhos de Israel, pelas doze fontes de corrida em Helim, pelas doze pedras no escudo de Arão, pelos doze pães da festa da proposição, pelos doze espiões enviados por Moisés, pelas doze pedras pelas quais o altar foi feito, pelas doze pedras tomadas do Jordão, pelos doze bois descobertos pelo mar de bronze. Também no Novo Testamento, pelas doze estrelas na coroa da noiva, pelos doze fundamentos de Jerusalém, que João viu, e seus doze portões. (Rábano de acordo com Aquino, sobre Mateus 10:1-4)

A mulher de Apocalipse 12 tem uma coroa com doze estrelas. Rábano pensa que a mulher era a noiva. Todos sabem que “noiva” é um termo comumente utilizado para se referir à igreja e não à Maria.

A Enciclopédia Católica traz o reconhecimento do Cardeal Newman:

Cardeal Newman considera duas dificuldades contra a interpretação anterior da visão da mulher e da criança: em primeiro lugar, diz-se ser pobremente suportada pelos Pais (...) (Fonte)

Obviamente, Newman tenta contornar esse problema, mas reconhece que de fato a interpretação católica tem pouco suporte patrístico. O comentário bíblico Jerônimo, produzido pelos maiores eruditos bíblicos católicos do séc. XX afirma:

A maioria dos comentaristas antigos a identificou como a Igreja. Na Idade Média, foi amplamente difundido que ela representava Maria, a Mãe de Jesus. Exegetas modernos têm geralmente adotado a interpretação mais antiga, com algumas modificações. Nos últimos anos, vários católicos têm defendido a interpretação mariana. Numerosos detalhes contextuais, no entanto, são inadequados para tal explicação. Por exemplo, dificilmente poderíamos pensar que Maria suportou a pior das dores de parto (v. 2), que foi perseguida no deserto após o nascimento de seu filho (v. 6, 13), ou, finalmente, que ela foi perseguida  através de seus outros filhos (v. 17). A ênfase sobre a perseguição da mulher é realmente apropriado somente se ela representa a Igreja, que é apresentado ao longo do livro como oprimida pelas forças do mal, ainda que protegida por Deus. Além disso, a imagem de uma mulher é comum na antiga literatura secular Oriental, bem como na Bíblia (Isaías 50:1 e Jeremias 50:12) como símbolo para um povo, uma nação ou uma cidade. É apropriado, então, ver nesta mulher o povo de Deus, o verdadeiro Israel do AT e NT. (D’Argon J-L. “The Apocalypse.” The Jerome Biblical Commentary, ed. Raymond E. Brown, Joseph A. Fitzmyer, Roland E. Murphy [London: Geoffrey Chapman, 1969])

A posição mais antiga e defensável identifica a mulher como a igreja, incluindo não somente os crentes da nova aliança, mas também da antiga.

A interpretação Mariana

O primeiro pai da igreja a mencionar a interpretação mariana foi Epifânio que escreveu no séc. IV:

A Escritura não nos diz se Maria morreu ou não. A Escritura é silente sobre isso por causa do extraordinário milagre da sua partida (...) Alguns entendem a profecia de Simeão [Lc. 2:35] como significando que ela era seria espada transpassada por uma espada. Por outro lado, ela pode ter sido isenta da morte, pois o que João nos diz em Apocalipse pode ter se cumprido nela: "e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho" [Ap. 12:4]. De minha parte, eu não direi nem que ela permaneceu imortal ou que ela morreu. Eu me abstenho porque a Escritura que transcende a compreensão da mente humana deixou esta questão na escuridão para a honra de seu corpo. (Panarion 78, 11, 3-4)

Mas em outros lugares, no Apocalipse de João, lemos que o dragão se atirou para a mulher que tinha dado à luz uma criança do sexo masculino; mas as asas de uma águia foram dadas à mulher, e ela voou para o deserto, onde o dragão não poderia alcançá-la. (Apocalipse 12: 13-14). Isso poderia ter acontecido com Maria no caso. (Ibid)

Epifânio pessoalmente não endossa a interpretação. Ele se limita a afirmar a sua possibilidade. Ele expressa total dúvida sobre o fim da vida de Maria bem como sua identificação como a mulher de Apocalipse 12. Fica claro que não endossa tal interpretação quando afirma que a Escritura é silente, por isso ele pessoalmente não assumiria uma posição. O historiador da igreja Steve Puluka afirma:

Esta passagem menciona apenas que existe a associação sem realmente endossar essa visão. Ele qualifica a identificação com [Maria] ousando não afirmá-la com certeza absoluta. (Fonte)

O primeiro de fato a defender tal interpretação foi Quodvultdeus de Cartago, que escrevendo no sec. V, afirmou:

No Apocalipse do apóstolo João está escrito que o dragão estava em plena vista da mulher prestes a dar à luz, a fim de que, quando desse à luz, ele iria comer a criança nascida [dela]. Que nenhum de vocês ignore [o fato de] que o dragão é o diabo; e saibam que a virgem significa Maria, a casta, que deu à luz a nossa cabeça casta. Ela também incorpora em si mesma uma figura da Santa Igreja, a saber: mesmo tendo um filho, ela permaneceu virgem, assim a igreja ao longo do tempo carrega seus membros, mas não perde sua virgindade. (Terceira Homilia sobre o Credo)

Esse teólogo era amigo e discípulo de Agostinho. Por conta disso, alguns argumentam que essa deveria ser a interpretação agostiniana. Como não há nos numerosos textos do bispo de Hipona qualquer menção a essa interpretação, trata-se de um argumento frágil. Todavia, a posição de Quodvultdeus não era a mesma do moderno romanismo. Eric Svendsen escreve:

Além disso, as palavras de Quodvultdeus devem ser mantidas em contexto. Suas palavras são tiradas de um trabalho que tenta mostrar que tipos e figuras permeiam o texto bíblico. Se alguém está à procura de um "tipo" no simbolismo da mulher que dá à luz ao Messias em Apocalipse 12, não se pode deixar de ver Maria. No entanto, mesmo aqui Quodvultdeus tem o cuidado de distinguir o simbolismo do "dragão", que ele diz que é o diabo (ou seja, João especificamente o identifica como tal), e a "mulher", que ele diz que "significa" Maria, que representa igreja, que Quodvultdeus vê como o verdadeiro simbolismo de João nesta passagem. Em outras palavras, Quodvultdeus vê Maria não como referente primária, mas somente como uma referência derivada. Isto está muito longe da crença popular entre os estudiosos católicos conservadores e apologistas que simbolismo mariano é a intenção de João nesta passagem. (Who Is My Mother? [Amityville, New York: Calvary Press, 2001], pp. 204-205)

O erudito bíblico católico Raymond Brown acertadamente escreveu:

O fato de que a ênfase Mariológica em Apocalipse 12 é relativamente recente levanta a questão de saber se representa uma exegese do texto em si ou simplesmente uma imaginativa aplicação teológica como parte de uma busca de apoio bíblico para doutrina mariana [Brown et al, 1978: 236] (Ibid., p. 206)

3 comentários:

  1. Bruno, paz e graça. Gostaria de saber se há a possibilidade de você fazer um artigo sobre como os antigos encaravam a oração aos mortos conhecida pelos católicos como "intercessão dos santos".

    Em meus atuais debates tenho visto católicos usando citações pinçadas dos antigos para defender essa prática.

    Grato pela atenção, Deus abençoe sua vida.

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    Respostas
    1. Eu tenho dois artigos sobre intercessão dos santos:

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/02/os-pais-ante-nicenos-e-oracao-santos-e.html

      Nesse artigo, eu trato do fato de nenhum pai pré-niceno apoiar a doutrina romanista de intercessão dos santos. Eu tratei especificamente do testemunho de Agostinho nesse artigo:

      http://respostascristas.blogspot.com.br/2016/03/agostinho-e-o-catolicismo-romano-parte_17.html

      A oração diretamente aos santos começa a se tornar popular no séc. IV, mas assim como outras distintas doutrinas romanistas, não pode ser rastreada ao período apostólico ou ao menos a um período próximo dos apóstolos.

      No artigo acima, você perceberá que não há evidência patrística favorável a oração aos santos no segundo século e ainda que há evidência contrária a essa doutrina. Isso é muito relevante, tendo em vista que a oração não passou despercebida pelos autores cristãos. Tertuliano, por exemplo, escreveu um tratado sobre oração sem fazer qualquer menção a doutrina romana. Ele também sugere que os mortos deixam de ter acesso a qualquer conhecimento desse mundo, o que é incompatível com orar aos santos.

      No século III, surge com Orígenes a semente da intercessão dos santos. Ele acreditava que os crentes que estão no céu oram pela igreja na terra. Todavia, isso ainda era substancialmente distinto da atual da doutrina romana, pois Orígenes condenava qualquer oração que não fosse feita diretamente a Deus.

      Os católicos costumam tratar as duas coisas como a mesma, e por isso apresentam Orígenes e Cipriano como testemunhos favoráveis, mas nada poderia estar mais longe da realidade. Quando se observa o tempo em que as testemunhas favoráveis viveram (séc. IV) e que muitas das supostas testemunhas apenas defendiam que a igreja no céu ora pela igreja na terra sem, no entanto, aprovar orar aos santos, percebe-se que a evidência histórica pesa contra e não a favor da igreja romana.

      Abraço meu irmão! Deus o abençoe!

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    2. Grato pela atenção Bruno. Deus te abençoe grandemente.

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