segunda-feira, 20 de junho de 2016

Tomás de Aquino e a Tentativa de Salvar o Dogma da Imaculada Conceição


Introdução

Os que acompanham nosso blog sabem que nos envolvemos num debate com o site apologistas católicos sobre Tomás de Aquino e a imaculada Conceição. Recentemente foi publicada uma resposta ao nosso último artigo. Os mesmos argumentos foram utilizados e como anteriormente, alguns de nossos argumentos não foram respondidos. Num debate, o ônus da prova recai sobre quem afirma. A afirmação positiva é do apologista católico. O ponto central do debate é se Tomás mudou ou não de ideia. A falsidade ou autenticidade da citação é um ponto secundário que serve como elemento de prova, mas a evidência em si não é tão importante quanto a alegação que se pretende provar. Meus comentários do artigo anterior estarão em azul e os do apologista em vermelho. Na seção “introdução” do seu artigo anterior, apologista católico afirmou:

No seu texto inicial o protestante afirmou que era “falsificação romanista”, agora o discurso muda e passa para “há sérias duvidas”, temos aqui uma mudança de discurso bastante significativa.

Não mudei de discurso. Eu afirmei que era uma falsificação romanista, mas eu não disse que havia certeza de que se tratava de uma falsificação. Eu não qualifiquei minha afirmação como certa ou infalível, por isso, o fato de eu afirmar que há sérias dúvidas é compatível com minha afirmação anterior. Quando alguém diz “o sol vai nascer amanhã”, isso quer dizer necessariamente que é uma afirmação infalível? Obviamente não. Por mais provável que seja o nascer do sol, é possível que um dia isso não aconteça, portanto, qualquer afirmação a respeito é meramente provável. Eu continuo acreditando que se trata de uma falsificação porque as evidências disponíveis apontam para isso.

Quando estamos lidando com a autenticidade de uma obra, citação ou mesmo a interpretação de um texto, o máximo que podemos ter é a posição mais provável ou plausível. Não há nenhum intérprete ou crítico textual infalível que pudesse produzir uma interpretação infalível de Tomás de Aquino. Apesar de a igreja romana supostamente ter um magistério infalível, é sabido que nenhuma declaração “infalível” sobre as obras de Tomás foi produzida até hoje.  Dessa forma, num debate como esse, vence quem apresenta a posição mais plausível que melhor se encaixa as evidências disponíveis. Todavia, o apologista católico tenta se esvair de sua responsabilidade imputando a mim algo que ele fez. Quem afirmou certeza foi ele:

Porém é certo que ele morreu crendo na Imaculada conceição da virgem Maria.

Por isso, meu artigo anterior atacou as bases dessa “certeza”. Ele afirma que a citação é autêntica com base na edição crítica de Rossi, no entanto, outras edições críticas produzidas por católicos não contém “nec origiale”. Ele citou tomistas que apoiavam sua posição, no entanto, a maioria dos tomistas discordaria, conforme opinião da obra de Juniper Carol. Nenhum dos argumentos que ele trouxe sustenta a tese inicialmente defendida. Agora, quem der uma lida nos últimos artigos, verá que não afirma mais tal certeza. Pelo contrário, ele afirmou:

Assim, a tal “falsificação romanista” não tem qualquer fundamento e é muito improvável.

Se a mudança de opinião com base no referido texto era certa, porque agora ele apela às probabilidades? Onde está a certeza?

Aqui é famosa falácia ad populum, está argumentando que algo é verdade ou não simplesmente porque uma suposta maioria aceita determinado ponto, e é nesse argumento junto o argumento ad ignoratiam que ele tenta se basear em todo o seu texto.

Além do frequente cometimento de falácias, o apologista católico demonstra pouco preparo para detectar falácias. Onde eu disse que minha posição é necessariamente verdadeira porque a maioria dos tomistas a adotam? O apologista tentou em seu artigo formular um argumento da autoridade quando afirmou em suas conclusões:

Que sabem mais do que os tomistas a respeito de São Tomás.

A implicação desse argumento é que minha tese só poderia estar certa se fosse apoiada pelos tomistas. Isso sim é uma falácia do apelo à autoridade, porque pressupõe que os tomistas necessariamente estão certos. Ainda que tal argumento não fosse falacioso, ele estaria adotando uma premissa falsa, pois não existe a “posição dos tomistas”, afinal a posição católica não é defendida por todos os tomistas ou sequer pela maioria. O apologista também disse:

Ele ainda diz que eu estava afirmando que estava apoiado em uma maioria de autores tomistas. Ora, onde tem isso no meu texto? Não afirmei em nenhum lugar, até porque “maioria” serve de que?

Ele simplesmente retrocedeu de sua posição original, pois o argumento de que eu deveria provar saber mais do que os tomistas pressupõe necessariamente que a maioria dos tomistas apoiava a posição dele. Ele também disse:

Poderíamos citar aqui a exaustão autores tomistas que confirmam que na realidade as palavras “nec originale” que foram retiradas e que São Tomás mudou e reafirmou a imaculada conceição de Maria (...)

Até agora estamos esperando as “citações a exaustão”. Ele também cometeu a falácia do apelo à autoridade em outro trecho:

Porém, o interessante disto tudo é que o interlocutor parece querer ensinar são Tomás para católicos, e achar que durante séculos os tomistas nunca explicaram a questão e ficaram calados até os protestantes descobrirem que essa é uma “falsificação romanista”.

Primeiro, eu não afirmei nada disso. Segundo, ele sugere que é inadequado um não católico ensinar “são Tomás para os católicos”. Essa afirmação pressupõe que para alguém estar certo sobre Tomás, não pode estar em oposição aos estudiosos católicos. Na verdade, é uma mistura de apelo à autoridade com ad hominem. Ele repetiu a mesma falácia aqui:

Na realidade, a resposta que ele dá se baseia em uma tentativa do Apologista protestante americano Francis Turrentin em desqualificar esta citação que é mencionada na obra de Réginald  Garrigou-Lagrange, um dos maiores teólogos do século XX e o maior Tomista de seu tempo. É interessante notar que o americano, além de querer ensinar o pensamento de São Tomás ao Garrigou (...)

Ele sugere que é inadequado um apologista americano desqualificar a citação do suposto “maior tomista de seu tempo”. Além disso, ele confunde a falácia do apelo à autoridade e a falácia ad populum. O apelo à autoridade necessariamente se refere a especialistas ou pessoas de notório saber no assunto em questão, já ad populum se refere ao apelo à maioria não qualificada. Se eu afirmasse: “a maioria das pessoas não acredita que Tomás mudou de posição, logo ele não mudou de posição”, seria uma falácia ad populum, mas eu não teci esse tipo de argumento. Ademais, em nenhum momento eu apelei à ignorância como ele diz. Eu não afirmei que os autores tomistas não conheciam a suposta mudança, logo ela não existiu. Pelo contrário, eu disse que a maioria dos tomistas afirmam que Tomás negou a imaculada conceição sem fazer qualquer menção a uma suposta mudança de posição. Isso é um argumento do silêncio e não o apelo à ignorância, até porque eu acredito que os tomistas estão cientes da existência da “tese da mudança”. Argumentos do silêncio podem ou não ser falaciosos. Isso vai depender das circunstâncias em que o silêncio é invocado.

Supunha que alguém afirme que sua casa foi arrombada. Todavia, depois de uma perícia se verifica que não há qualquer sinal de arrombamento. Todas as portas e janelas estão intactas. Isso aponta que não houve nenhum arrombamento. Da mesma forma, historiadores usam argumentos do silêncio para determinar se um evento aconteceu ou não. Isso se dá quando o acontecimento do evento sob determinadas circunstâncias era esperado. Apologistas católicos também fazem amplo uso do argumento do silêncio. Quando apontamos a controvérsia de Cipriano com Estevão, é comum ouvir que Cipriano não faz uma negação explícita da autoridade de Estevão. O mesmo argumento é também trazido na controvérsia pascal que envolveu Vítor e os bispos de Ásia. Obviamente, são argumentos falaciosos porque nos dois casos a autoridade do bispo romano foi negada, mas há circunstâncias em que o silêncio tem muita força probatória.

Agora, imagine um autor católico romano que simplesmente afirma que Tomás negou a imaculada conceição sem mencionar qualquer possível mudança de posição, e levemos em conta que o contexto dessa citação se deu numa passagem em que são mencionados outros autores que defendem que Aquino apoiou o dogma católico. Há algumas alternativas: (1) acreditar que esse autor não conhecia a “tese da mudança”; (2) Acreditar que ele cria nessa tese, mas a ignorou ou (3) Acreditar que ele de fato não aceita essa tese. A opção (1) é pouquíssimo plausível tendo em vista que se trata de especialistas e segundo nosso oponente a “tese da mudança” é antiga e bem disseminada. A opção (2) é também improvável, pois se trataria de um especialista católico que crê no dogma católico se esquecendo de mencionar o fato de um dos maiores doutores da igreja romana não ter morrido negando o dogma.  A opção (3) é mais provável, tendo em vista que se trata de autores que deveriam conhecer a tese e teriam todo o interesse em aceitar que Tomás morreu como um bom católico romano crente na imaculada conceição.

Além do fato do apologista nos acusar de cometer a falácia que ele cometeu, no meu artigo eu fiz questão de enfatizar:

O argumento da autoridade é probabilístico. Apenas torna uma posição mais provável, mas não é suficiente para fechar a questão.

Imagine que há uma pessoa doente. Você a leva a vários médicos diferentes e todos afirmam que se trata de meningite. Não contente você a leva a um curandeiro que afirma se tratar de câncer. Obviamente, a posição dos médicos é mais confiável ou provável que a do curandeiro. Porém, ainda há uma chance (por menor que seja) que o curandeiro esteja certo e os médicos errados. Dessa forma, quando citamos a apoio de um especialista, estamos tornando nossa posição mais provável do que sem esse apoio, o que não implica que a posição do especialista está imune ao erro. Por último, ele ainda me acusa de comete um ad hominem no seguinte comentário:

O apologista católico se agarra com unhas e dentes a opinião minoritária de Garrigou. Esse é o resultado prático da Sola Eclésia. Os católicos, infelizmente, não podem buscar a verdade por si próprios.

Nesse trecho eu apenas constatei um fato, sequer estava formulando um argumento. Não disse que ele estava errado causa disso. Isso sim seria um ad hominem. Eu simplesmente constatei a realidade de que os “bons católicos” não são livres para pensarem por si mesmos e precisam aceitar os dogmas da igreja romana, por mais que as evidências sejam contrárias. Os qualifico como “bons” porque é isso que um católico deve fazer, a despeito do fato de a maioria dos católicos agirem como protestantes quando se trata de acatar ou não os ensinamentos do magistério da igreja.

Com essa frase fica evidenciado que o protestante não tem conhecimento sobre essa questão, até porque essa mesma opinião é encontrada em Giovani Felice Rossi famoso por sua edição crítica dos escritos de São Tomás, e também dada anos depois pelo tomista Pe. Jacques-Marie Vosté (dominicano como São Tomás), ambos anteriores a Lagrange, logo, além de não saber do que fala a respeito da questão, acha que isso é opinião formulada por Lagrange e que estamos nos apoiando nele, como que não vimos outros autores falando da questão.

Eu afirmei que a opinião de Garrigou era minoritária com base na citação da obra de Juniper Carol. Dizer que alguém tem uma opinião minoritária não é o mesmo que dizer que ele é o único a defender tal posição. Uma minoria não é necessariamente composta por um homem, mas pode ser composta por vários. No meu próprio artigo, eu inclusive citei a posição de Rossi. Mais um detalhe – não foi trazida qualquer evidência de que Rossi apoiasse a “tese da mudança”. Até onde se trouxe, ele argumenta em favor da autenticidade do trecho, mas isso não implica que Tomás morreu acreditando na imaculada conceição. Quanto ao Voste, eu disse que o artigo do site católico trouxe uma evidência anedótica:

Poderíamos citar aqui a exaustão autores tomistas que confirmam que na realidade as palavras “nec originale” que foram retiradas e que São Tomás mudou e reafirmou a imaculada conceição de Maria como a obra de J.M Voste “Comentarius Iliam p. Summae Theolo. S. Thomae”, porém consideramos o que aqui está suficiente como prova.

Vejam que ele sequer citou a página da obra em questão. Só agora no artigo mais recente ele traz a citação de Garrigou que aponta a citação de Voste. Dessa forma, nenhuma falácia foi refutada porque não foi cometida. Ele também ataca alguns de meus outros artigos sobre a questão dos apócrifos. Esse tema será tratado em artigos a parte que serão publicados nas próximas semanas.

Trata-se aqui do argumento ad hominem a minha pessoa, o que ignorarei. Mas agora ele deve demonstrar em qual site em inglês tem a questão da autenticidade do texto, como fez dizendo que eu supostamente copiei a menção ao Padre Vosté do site do Thaylor Marshall.

Esse comentário foi direcionado ao seguinte trecho do meu artigo:

Acredito que o autor do artigo leu algum site em inglês e replicou a tese. É possível que sequer soubesse das dúvidas que pairam sobre a citação.

Mais uma vez – onde está o ad hominem? Onde eu afirmei que ele está errado porque copiou uma citação de um artigo em inglês? O apologista católico parece equiparar ao ad hominem qualquer comentário sobre suas crenças ou fontes. O artigo do Taylor Marshal que eu apontei tem o mesmo tipo de argumentação e cita o Voste igualmente sem citar a página. Como o site apologistas católicos se utiliza bastante de sites católicos em inglês, era natural supor que a citação saiu daí.

Quanto ao Mariano Spada, não há problema se o mesmo argumento está no Wikipédia. Diferente do que ele diz, eu não traduzi o trecho do Wikipedia. Basta observar as minhas palavras para perceber que foram escritas de próprio punho e não traduzidas palavra por palavra.

Em 1839, um professor de teologia do Colégio São Tomás de Aquino chamado Mariano Spada publicou a obra “Esame Critico sulla dottrina dell’ Angelico Dottore S. Tommaso di Aquino circa il Peccato originale, relativamente alla Beatissima Vergine Maria”.  O título traduzido seria “Um exame crítico da doutrina de Santo Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, sobre o pecado original em relação à Santíssima Virgem Maria”. Ela pode ser acessada aqui. O mais importante é o objetivo da obra. Spada intentava trazer uma interpretação de Tomás que aliviasse o constrangimento de Pio IX ao declarar um dogma negado pelo teólogo (veja aqui). Contudo, se Tomás tivesse morrido acreditando nessa doutrina, não haveria constrangimento algum. Mas, o mais importante é que em nenhum momento Spada lança mão do argumento de que Tomás morreu acreditando na doutrina. Se havia um momento onde a suposta mudança deveria ficar evidente, seria aqui.
  
A página em questão tem o mérito de trazer links com a obra do autor. Por que eu não poderia usar esses links que estão num site confiável como o Google Books? Se um artigo de internet cita uma fonte, eu necessariamente preciso citar a fonte de onde a fonte saiu? Se esse é o caso, o site apologistas católicos terá que ser fechado, pois o que mais há em seus artigos são citações tiradas de artigos de apologistas americanos como o Dave Armstrong. É lógico que eu não preciso citar o site de onde uma citação saiu, basta que se aponte a fonte da própria citação. O mais interessante é que o apologista sequer atacou o argumento. Até mesmo Spada que escreveu uma obra antes da definição do dogma para compatibilizá-lo com Tomás não fez uso do argumento católico. Se a “tese da mudança” era tão aceita pelos tomistas como ele originalmente defendeu, porque essa obra não usou tal tese. Seria um argumento e tanto para quem deseja salvar o dogma católico.

Sobre a negação da imaculada conceição na Exposição da Saudação Angélica

O principal argumento que eu trouxe é que na mesma obra Tomás nega a doutrina romanista. Se eu me proponho a refutar alguém, é esperado que eu interaja com o principal argumento do meu oponente. Todavia, o artigo anterior não interagiu com o meu principal argumento. Somente no artigo mais recente, ele ensaiou uma tentativa de resposta.

Ao contrário do que ele afirma tratamos disso sim no texto anterior, ou ele não quis ler ou pode ser que eu não tenha deixado claro.

Eu estou especialmente interessado que ele mostre onde no texto anterior esse argumento foi tratado. Essa foi a “refutação” que simplesmente ignorou o principal argumento do “refutado”.

Por que necessariamente as palavras “nec originale” não fazem parte da obra original a partir dessa suposta contradição? Poderíamos argumentar também que o discurso anterior onde há a suposta contradição é que não está na obra, ou seja, esse argumento de “explicação plausível” pode servir também pra quem quiser dizer que o trecho anterior é falso, baseado na veracidade das palavras “nec originale”. Ele está escolhendo o que quer aceitar como verdadeiro ou não baseado em uma suposta contradição. Por que ele não diz que o trecho anterior é o que não faz parte do discurso? Claro, porque não convém a ele, só convém achar que “nec originale” é que é “falsificação romanista”.

A grande questão é que sobre o trecho que nega a imaculada conceição não pairam dúvidas sobre autenticidade, enquanto o trecho invocado pelo católico está envolto em controvérsias e dúvidas. Meu argumento pode ser atacado de três maneiras:

(1) Afirmar que o trecho invocado por mim é de origem duvidosa. O apologista católico bem gostaria de fazer isso, mas não há dúvidas sobre a autenticidade desse trecho. Até mesmo autores que defendem a “tese da mudança” não negam a autenticidade desse trecho;

(2) Afirmar que Tomás se contradisse. Porém, trata-se de uma hipótese pouco provável tendo em vista se tratar de uma contradição explícita e de fácil percepção. Uma solução seria afirmar que se tratam de trechos escritos em períodos diferentes da vida de Tomás. O problema é que não há evidência para isso. Ademais, a obra é bem curta e provavelmente foi escrita num curto período de tempo.

(3) Atribuir um significado ao texto harmônico com a imaculada conceição.

Nenhuma das três hipóteses é defensável, portanto, nosso argumento é a melhor explicação. Ele se amolda melhor ao sentido claro do texto e ao pensamento geral de Tomás contra a imaculada conceição. Isso implica que a passagem duvidosa é de fato é uma interpolação. Vejamos a interpretação católica:

Primeiramente, como conciliar os dois textos então? Estariam em contradição? A solução é simples, no trecho anterior a “nec originale” São Tomás está falando que ela foi “in originali concepta” isto obviamente deve ser entendido no sentido que ela foi concebida pelos pais que tinham a mancha do pecado original, logo temos que entender ai “concebida” no sentido da cópula dos pais, não da transmissão do pecado pelos pais a ela. Assim na primeira frase ela foi concebida com os pais com a mancha do pecado original e na segunda frase fica claro que esse pecado não foi transmitido a ela, por isso mesmo ele fala que não lhe ocorreu pecado original.

O argumento católico é que Maria teria nascido a partir de relações sexuais de pessoas manchadas pelo pecado original, por isso teria sido concebida em pecado. Admiro a criatividade dessa explicação, mas definitivamente não é plausível. Ele está empurrando para o texto informações que não estão lá. Em toda a obra não há qualquer menção a forma como os pais de Maria a geraram. Na verdade, eles sequer são citados. Nem no contexto imediato nem no contexto geral há qualquer informação que dê apoio a essa interpretação. Verifiquemos a citação em contexto estendido:

Da Santíssima Virgem é dito ser cheia de graça de três maneiras. Em primeiro lugar, porque a sua alma estava cheia de graça. A graça de Deus é dada para duas finalidades principais, ou seja, fazer o bem e evitar o mal. A Santíssima Virgem, então, recebeu a graça no grau mais perfeito, porque ela tinha evitado todo o pecado mais do que qualquer outro Santo depois de Cristo. POIS O PECADO É TANTO ORIGINAL, E DESSE ELA FOI LIMPA NO ÚTERO, como mortal ou venial, e destes, ela estava livre. Assim, é dito: "Você é justa minha amada e não há mancha em você" [Sg 4:7]. Santo Agostinho diz: "Se pudéssemos reunir todos os santos e perguntar-lhes se eles eram totalmente sem pecado, todos eles, com exceção da Virgem diriam a uma só voz: "Se dissermos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" [1 Jo 1:8]. Eu, no entanto, excetuo esta Virgem santa de quem, por causa da honra de Deus, gostaria de omitir qualquer menção do pecado" [Da natureza e da graça 36]. Porque sabemos que a ela foi concedida a graça de superar todo tipo de pecado por Ele a quem ela mereceu conceber e dar à luz, e ele certamente era totalmente sem pecado. CRISTO EXCEDEU A VIRGEM SANTÍSSIMA NO FATO DE QUE ELE FOI CONCEBIDO E NASCIDO SEM PECADO ORIGINAL. MAS A SANTÍSSIMA VIRGEM FOI CONCEBIDA EM PECADO ORIGINAL, MAS NÃO NASCEU NELE.

O contexto imediato se refere à concepção no pecado original e não ao fato dos pais de Maria ter pecados. Mas, não para por aí. O pior de tudo é que Tomás diz explicitamente: “e desse ela foi limpa no útero”. Se ela não foi concebida em pecado, como poderia ter sido limpa no útero? Como alguém que não está sujo pode ser limpo? É interessante observar que Aquino se referia à Maria como pura, sem mancha, sem qualquer pecado, cheia de graça, mas ainda assim negava a imaculada conceição. A razão é muito simples. Maria teria sido santificada ainda no útero. A partir de então ela estava cheia de graça e livre de qualquer mancha. Todavia, não foi desde a concepção. Os apologistas católicos costumam trazer qualquer afirmação sobre a pureza de Maria como suporte à imaculada conceição, mas isso não é suficiente. É preciso demonstrar que ela foi totalmente pura desde a concepção. Esse é um elemento central do dogma, por isso se chama “imaculada concepção”. Qualquer tipo de santificação após a concepção não é o dogma católico, mas uma negação explícita do dogma. O texto em latim pode ser verificado no site da fundação Tomás de Aquino aqui.

Peccatum enim aut est originale, et de isto fuit mundata in utero; aut mortale aut veniale, et de istis libera fuit.

Não por acaso, as traduções para o inglês trazem o termo “pecado original” e inclusive apontam que essa foi a mesma posição expressa na Suma Teológica. A interpretação alternativa é um “duplo twist carpado” para tentar negar o significado óbvio. Mas eis que surge um interessante argumento:

Argumento parecido é dado por protestantes que negam a existência do pecado original quando apresentamos os Salmos 38 (...) Logo, Cristo neste texto foi “concebido” sem pecado, porque sua mãe não tinha pecado nem teve contato sexual, e Maria foi “concebida” em pecado, porque seus pais tinham pecado, que não foi transmitido a ela, então “concebida” deve se entender ai como o estados dos pais no ato sexual que como diz ele próprio, “não se pode realizar sem libidinagem” (Compêndio Teológico – CCXXIV), logo essa é uma das explicações que harmoniza o texto.  Se isso não satisfizer o protestante, podemos então adotar a opção presentada de achar que São Tomás era esquizofrênico. Claro que aqui vai argumentar que “isso é malabarismo” ou “está deturpando”, então que prove que todos os manuscritos são falsos.

Seria interessante saber quem são esses protestantes. Os maiores exegetas protestantes das Escrituras consideram o texto de Salmos 38 como referente ao pecado original, pois a fé reformada afirma claramente a crença no pecado original. Agora, quando um apologista católico precisa utilizar um suposto argumento protestante para demonstrar como um teólogo escolástico do século XII não negou a imaculada conceição, mostra que algo está errado. É uma comparação totalmente anacrônica e sem sentido que o próprio parece reconhecer. O mais interessante é a “lógica” do apologista. Existe muita controvérsia sobre o “nec originale”. Se o texto precisa ser harmonizado, a citação autêntica deveria prevalecer sobre a duvidosa. No entanto, ele inverte o processo. O padrão é a citação duvidosa estabelecer a interpretação da citação autêntica. Estudiosos patrísticos e críticos textuais não trabalham dessa forma – uma obra sobre a qual não há dúvidas de autenticidade possui valor probatório superior a uma de origem duvidosa.

No mais, porque eu tenho que provar que todos os manuscritos são falsos? Isso implicaria que um texto autêntico necessariamente deveria estar em todos os manuscritos – uma tese absurda. Além disso, ele traz uma citação sem nenhum contexto numa obra diferente e de contexto diferente da citação discutida. Se ele quisesse trazer alguma substância a essa interpretação (o que seria inútil devido ao contexto imediato), deveria demonstrar outros textos de Tomás em que ser concebido no original possuía o significado de ser gerado através de relações sexuais naturais. Em todos os textos que li tal significado não está presente.

Ele também afirma que Garrigou Lagrange não lida com este fato, sendo que eu coloquei nos comentários a obra “A Sintese Tomista”, onde o Garrigou fala desta questão:

Vejamos o que eu disse:

O que chamou mais atenção "na refutação" foi nem ele nem o Garrigou (até onde ele trouxe no texto) terem lidado com o fato de que na mesma obra Tomas negou explicitamente a imaculada conceição.

Eu fiz questão de frisar “até onde ele trouxe no texto”. E sim, ele não tratou essa objeção no texto anterior nem trouxe no artigo qualquer posição desse autor tratando da divergência.

Percebam aqui que Garrigou Lagrange faz menção a mais 2 Tomistas o Padre Frietoff e também outra sessão de outra edição do Boletim Tomista escrita em 1933 por Mondonnet. São mais dois tomistas apoiando a ideia, até aqui já mostramos cinco.

Essa definitivamente não é a conclusão lógica da citação trazida. Vejamos:

(...) e se quer evitar neste escrito uma contradição inaceitável em algumas linhas de distância, deve se ver nas palavras “in originali concepta” o “debitum contrahendi” em razão do corpo formado por geração ordinária, e não o pecado original em si, o que só pode estar na alma (cf. Fríetoff C., loc. cit., p. 329, e P. Mandonnet em "Thomiste Bulletin", de Janeiro a março 1933 Notas et Communications, pp. 164- 167).

Garrigou não está necessariamente afirmando que esses dois autores adotam essa hipótese, tanto é que começa a afirmação com um “se”. Eles poderiam apenas afirmar que essa é a única opção viável para harmonizar o texto, sem necessariamente adotá-la. Além do mais, não há nada nessa citação que implique que esses autores adotava a versão crítica de Rossi e defendessem a “tese da mudança”.

O apologista traz a explicação de Garrigou, segundo o qual Tomás acreditava que a concepção do corpo e a animação eram estágios distintos. Essa questão é irrelevante para a harmonização do texto, pois ele afirmou explicitamente que Maria foi limpa do pecado original no útero. Os católicos tentam “salvar” o dogma romanista apelando a essa distinção. Todavia, é irrelevante uma vez que ele acreditava na santificação de Maria após a animação. Ainda que o momento da concepção envolvesse a geração do corpo e a infusão da alma, a santificação seria após a infusão. Portanto, Maria não teria uma concepção imaculada.

E, ainda, que Aquino discordasse da imaculada conceição apenas por uma questão filosófica, o problema persistiria. Se algum pai da igreja negasse a trindade por questões filosóficas, ele estaria escusado do cometimento de heresia? Obviamente não. É comum os apologistas tentarem suavizar a contradição afirmando que Aquino concordava com os elementos centrais da doutrina. Todavia, Aquino negou o elemento central do dogma. Maria teria sido cheio de graça desde a concepção. Isso é central e não secundário. Se os católicos fossem consistentes com a frequente alegação de que o magistério da igreja apenas preserva a fé sempre crida pela igreja, deveria considerar Tomás um herege. Ademais, é interessante trazer a nota de rodapé 41 do livro de Garrigou:

(41) A objeção foi levantada Boletim Tomista de Júlio-Dezembro 1932, p. (579) no qual nós lemos o mesmo opúsculo um pouco antes: "Ipsa (Virgo) omne peccatum vitavit magis quam alius sanctus, praeter Christum. Peccatum autem aut est originate et de isto fuit mundata in utero; aut mortale aut veniale et de istis libera fuit. Sed Christus excellit B. Virginem in hoc quod sine originali conceptus et natus fuit. Beata autem Virgo in originali concepta, sed non nata." Existe contradição entre esse texto e ao que parece bem autêntico e as linhas mais abaixo. É inverossímil que a poucas linhas de distância se encontre o sim e o não. A dificuldade se desaparece quando se tem em conta que para São Tomás a concepção do corpo, no início da evolução do embrião, precede em pelo menos um mês a animação, que é a concepção passiva consumada, antes do qual não existe a pessoa, pois ainda não existe a alma racional.

Garrigou reconhece a autenticidade do texto e propõe uma explicação que não responde à questão. Se Maria foi limpa do pecado original, ela necessariamente não foi preservada do desse pecado.

Outras citações que comprovaria a “tese da mudança”

Nesta seção do artigo, o apologista católico sequer interagiu com os nossos argumentos. Ele basicamente repetiu as mesmas coisas e trouxe citações que não trazem nenhuma afirmação da imaculada conceição. Tratemos primeiro do comentário aos Gálatas. A versão trazida pela fundação Tomás de Aquino é bem diferente da que o apologista trouxe:

Pois Ele somente e exclusivamente é aquele que não está sob a maldição da culpa, apesar do fato de que fez a si mesmo maldição por nós. Por isso, é dito, "Eu estou sozinho até que passe" (Sl. 140:10); e, novamente "Não há ninguém que faça o bem, nem um sequer" (Sl. 13:3); "Um homem entre mil que eu encontrei" (ou seja, Cristo, que foi sem qualquer pecado), "uma mulher entre todos elas eu não encontrei", que fosse totalmente imune de todo pecado, pelo menos original ou venial ( Ecl. 7:29).

Nessa versão não há qualquer referência à Maria. Se alguma conclusão pode ser tirada, seria no sentido de negar a imaculada conceição, pois se afirma que nenhuma mulher imune ao pecado original ou venial foi encontrada. Porque deveríamos adotar a versão apresentada por ele e não essa que ao menos é adotada pela Fundação Tomás de Aquino? Ele não traz nenhum argumento a seu favor, se limitando a postar uma versão presente no google books sem apresentar sequer as qualificações da fonte. Quem escreveu essa versão? Quem atesta que o trecho sobre Maria está nos manuscritos mais antigos? Antes de tudo, é necessário estabelecer a versão correta.

Eu coloquei o Volume XXIII do Sancti Thomas Opera Ominia de 1862 onde são demonstradas as várias versões dos comentários aos Gálatas e os antiquíssimos manuscritos que a contém, como demonstrei no caso de “nec originale”, porém esse trecho aos Gálatas é trabalho para outro texto que vai resultar no mesmo trabalho deste. O protestante simplesmente ignorou isso e todas as explicações que tem no link e nas palavras de Pedro Espinosa e simplesmente foi na internet procurar os textos baseado nas versões posteriores nas quais as palavras foram retiradas.

Pedro Espinosa não argumentou nada. Ele apenas se limitou a afirmar sua versão preferida e apontar outra fonte que supostamente provaria a autenticidade. De fato, o interlocutor católico terá muito trabalho em provar mais essa citação duvidosa. É no mínimo suspeito que as citações a favor da “tese de mudança” sempre estejam envoltas em controvérsia. Porque será? No entanto, vou poupar o trabalho do apologista católico. Mesmo a versão que ele apresentou não implica na imaculada conceição:

Por isso, é dito, ‘Eu estou sozinho até que passe’; e, novamente ‘Não há ninguém que faça o bem, nem um sequer’; ‘Um homem entre mil que eu encontrei’ (ou seja, Cristo, que foi sem qualquer pecado), "uma mulher entre todos elas eu não encontrei", que fosse totalmente imune de todo pecado, pelo menos original ou venial. Exceto a puríssima e louvável Virgem.

Percebam a sutileza. Tomás diz que não foi encontrada mulher que não tenha contraído pecado original OU venial. A exceção não precisaria necessariamente ser livre do pecado original, bastaria não ter cometido pecado venial. Nesse aspecto, Maria seria uma exceção, pois não teria cometido qualquer pecado venial. Se a citação dissesse pecado original E venial, a exceção necessariamente deveria ter sido livre dos dois. Todavia, Maria poderia ser uma exceção por simplesmente não ter incorrido em pecado venial.

Sobre os salmos, eu tratei em mais detalhes no meu artigo anterior. Nenhuma das citações afirma:

(1) Que Maria não incorreu em pecado original; ou

(2) Que Maria foi livre de qualquer pecado desde a concepção.

Eles basicamente se limitam a afirmar que Maria não tinha nenhuma mancha ou pecado. O apologista pressupõe que o pecado original está incluso. O problema é que Tomás diferencia claramente os pecados nos trechos em que trata da questão. Como vimos em citações anteriores, ele diferencia entre pecado mortal, venial, atual ou original. No mais, é preciso demonstrar que Maria foi livre de qualquer pecado desde a concepção, o que não é afirmado nos comentários aos salmos. Nós inclusive vimos que na citação da saudação angélica, o escolástico afirmou a pureza de Maria ao mesmo tempo em que afirma seu nascimento no domínio do pecado original.

Datação das obras

Esse foi um ponto ignorado pela resposta. Como argumentei no meu artigo anterior, o católico precisa necessariamente estabelecer uma data confiável para as referidas citações, provando que Tomás passou a acreditar no dogma católico no fim da vida:

Porém, existe outro problema com a tese católica – a datação das obras. É preciso demonstrar confiavelmente que as obras onde supostamente ele afirma a doutrina mariana são posteriores a todas as citações onde nega a mesma doutrina. De acordo com três listas cronológicas que podem ser vistas aqui, aqui e aqui, a Suma Teológica foi escrita entre 1266 e 1273. A saudação angélica teria sido escrita entre 1268 e 1273. Os comentários das epístolas de Paulo estariam entre 1265 e 1273. O mais tardio seriam os comentários sobre os salmos no intervalo 1272-1273.

Percebe-se que os períodos se sobrepõem. Ainda que o apologista estivesse certo sobre a saudação angélica, não seria suficiente, pois o período tradicionalmente atribuído à obra está entre 1268 e 1273, enquanto a Suma Teológica está entre 1266 e 1273. As citações contrárias à imaculada conceição estão na terceira parte da Súmula, que foi escrita mais para o final. Qual teria sido a última posição de Aquino então?

Sobre a autenticidade do termo “nec originale”

Essa é a seção mais decepcionante do texto. O apologista católico traz a posição de Rossi. Ora, disso já sabíamos. A questão é se há evidências confiáveis que apontem que os textos que contém a expressão justificam atribuir-lhe autenticidade a despeito de outros manuscritos não conterem e de outras versões críticas não concordarem. Ele afirmou anteriormente:

Que os 16 dos 19 manuscritos analisados por Rossi que contém a expressão “NEC ORIGINALE”, são “falsificações romanistas” e os 3 restantes que são os verdadeiros.

Minha resposta foi:

Antes de tudo é preciso estabelecer que de fato existe 16 de 19 manuscritos contendo “nec originale” e que esses são os mais confiáveis e justificam confiar que trazem o texto original. Eu obviamente não analisei nenhum desses manuscritos e não foi baseado nesse argumento que afirmei se tratar de uma falsificação romanista.

Tudo o que ele fez foi replicar a tese de Rossi. Vejamos as premissas adotadas pelo católico:

Dos 16 dos 19 antigos manuscritos analisados por Rossi contém a expressão “nec originali”.

Um detalhe aqui pode passar despercebido. Dado a força probatória que o apologista atribui a isso, é passada a impressão de que existem apenas 19 manuscritos. Mas, observe-se que não é isso que Rossi ou Garrigou afirmam. Eles afirmam que Rossi analisou 19 manuscritos. Esses 19 são todos os manuscritos existentes? Caso não sejam, quantos outros existem e qual o conteúdo deles? É possível fazer um caso probatório forte quando se seleciona de antemão quais as evidências serão utilizadas e se deixa de lado as outras não favoráveis. Não estou afirmando que esse é o caso, mas se o apologista católico não traz essas informações, a afirmação de que 16 de 19 favorecem sua posição perde bastante relevância.

Além disso, eu não questionei a veracidade da citação de Garrigou, mas se de fato as provas que eles alegam ter são verdadeiras. Isso sequer implica dizer que eles estão mentindo, afinal eles podem estar sinceramente errados sobre a datação, o número de manuscritos e etc. Agora vejamos o comentário “maroto” do apologista:

Para não precisar apresentar todos os 16 manuscritos, porque além de ser obviamente um grande trabalho para apenas um texto e demorar muito tempo para conseguir todos, selecionei apenas os 3 mais antigos e melhores que contém a palavra “Nec Originale” e solicitei a Biblioteca do Seminário de Torino, e que já servem como prova, por serem justamente os mais antigos que se tem conhecimento. Também solicitei 1 dos 4 outros que a palavra foi raspada ou suprimida.

Ele diz que iria provar que todos os 16 manuscritos teriam o termo “nec originale”, agora ele nos diz que “selecionou 3” apenas. A questão é como isso prova que os 16 manuscritos contêm o termo “nec originale”, se o máximo que ele fez foi apresentar três favoráveis? Ainda mais, dos quatro manuscritos que não contém o termo, ele traz apenas um com uma suposta raspagem.

As mais antigas versões contém a expressão “nec originali”.

Essa premissa também não foi provada pelos seguintes problemas:

(1) A única razão apresentada para acreditarmos na datação desses manuscritos é a autoridade de Rossi. Não é apresentada evidência favorável às datas ali colocadas. Isso é contraditório, pois ele afirmou que as edições críticas que apresentamos não provavam nada. Todavia, ele apenas oferece um argumento de autoridade. Porque deveríamos aceitar a datação de Rossi como suficiente para afirmar autenticidade e rejeitar outras edições? Para quem diz trazer evidências, isso é muito pouco;

(2) Se esses dezesseis manuscritos são os mais antigos, quais as datas dos demais que não contém a expressão? Percebam que em nenhum momento os manuscritos contrários são datados. Se ele deseja determinar quais os manuscritos mais antigos, necessariamente deve apontar as possíveis datas de todos os analisados. Lembremos que sequer sabemos se esses são todos os manuscritos.

(3) Mesmo na datação do Rossi, a maioria dos manuscritos é do final do século XIV ou século XV. Há ai um período de mais de 100 anos entre a morte de Tomás e a data desses manuscritos.

Nas versões que não contém a expressão “nec originali” estas palavras foram suprimidas.

Posteriormente as palavras “nec originali” foram substituídas por “ipsa virgo”.

Ele só trouxe um manuscrito demonstrando que a expressão “nec originali” foi suprimida, portanto, não provou sua alegação. Além do mais ele não trouxe um manuscrito sequer para provar que após a supressão, foi adicionado “ipsa virgo” ao lugar. Porque essa expressão teria sido suprimida? E possível inclusive que tenha por um copista que acreditou se tratar de uma interpolação, afinal linhas antes Tomás tinha negado o que supostamente acabara de afirmar.

Quanto aos meus comentários sobre Pedro Espinosa mantenho que se trata de um ilustre desconhecido. Em nenhum momento eu afirmei que a tese católica estava errada por esse motivo. A questão é que o apologista quis formular um argumento de autoridade usando um autor que sequer é uma autoridade na questão. Espinosa também não trouxe nenhum argumento favorável à sua tese, limitando-se a citar outra fonte. Por outro lado, Richard Gibbings trouxe sim argumentos. Ele assim como nós citou a contradição grotesca que resultaria ao se considerar a passagem duvidosa como autêntica.

Sobre os autores tomistas supostamente favoráveis à tese da mudança

Eu trouxe no artigo anterior uma citação atribuída por mim a Juniper Carol extraída de sua obra sobre Mariologia. Eu não retirei a citação diretamente do livro, mas da transcrição do capítulo sobre a imaculada conceição hospedada num site católico. Como o próprio site atribui o texto a Carol, fui induzido a acreditar que esse capítulo era de autoria dele. Isso não muda a relevância da fonte, pois saiu de uma obra de referência no assunto. E como Carol foi o editor do livro, provavelmente também endossa a opinião de que a maioria dos tomistas admite que Tomás negou a imaculada conceição.

Eu aleguei com base nessa citação que a posição majoritária dos tomistas não era favorável ao apologista católico, e ele não provou o contrário. Eu não afirmei que Garrigou é o único defensor, mas que é o mais citado. Uma minoria não é necessariamente uma pessoa. É uma questão de lógica rudimentar. Também não disse que não havia qualquer apoio a essa tese antes da proclamação do dogma em 1854.

Quanto a Enciclopédia Católica, trata-se apenas de mais uma fonte relevante que mostra que a principal disputa sobre Tomás não é sequer uma suposta mudança (que sequer é mencionada), mas o momento que a purificação ocorreu. O fato de uma edição posterior apontar um autor que manifesta uma posição diferente da maioria é irrelevante. A própria citação que eu trouxe já apontava isso. Por último o autor católico apresenta a opinião do suposto “maior tomista brasileiro”.

Não estamos falando aqui de qualquer pessoa, de qualquer autor que possamos encontrar na internet, mas de Dom Odilão Moura, um célebre tomista brasileiro que dedicou toda sua vida intelectual a estudar o tomismo. Como é que o protestante pode afirmar que essa era opinião minoritária de Lagrange baseado na omissão de outros autores, se vários vultos do tomismo falam sobre a questão? É por isso que não há qualquer condição de debater com alguém que tem a menor noção do assunto, mas que acha que pode chegar na internet e falar do negócio com uma simples pesquisa no google.

O fato de o suposto “maior tomista brasileiro” abraçar uma posição não implica que esta não seja minoritária. Acho que não é sequer preciso trazer o significado que o dicionário atribuiu ao termo “minoria” né. Eu de fato não conhecia Dom Odilão Moura, mas sei que se um indivíduo X foi limpo do pecado original no útero de sua mãe, isso implica que ele nasceu no domínio do pecado original. E me parece que nenhum dos tomistas trazidos deu qualquer explicação razoável para isso até agora.

No mais, é muita hipocrisia um site como esse condenar alguém por fazer pesquisas no google. De onde será que saiu a maioria das pesquisas dele? De onde sai os links que ele passa. Como um site que copia quase todos os seus argumentos de blogs americanos pode criticar o fato de alguém usar o google. Ele provavelmente deve usar o yahoo. Quem acompanha meus artigos, já deve ter percebido que eu vou muito além de apenas trazer argumentos de outros sites (o que eu obviamente faço sempre que considerar um bom argumento).

Há séries de artigos no meu blog baseadas em livros inteiros que li (é o caso da série sobre sucessão apostólica fundamentada na obra do Francis Sullivan). Há capítulos inteiros retirados de livros que li (como os artigos do papado retirados da obra de Klaus Schatz ou Hans Kung). Para alguém que defende teses absurdas como a de que Gregório de Nissa acreditava no purgatório, sendo que se tratava de um universalista, recomendo fortemente que use mais o google, mas não apenas para pesquisar em blogs católicos de baixa qualidade. Sem contar as citações totalmente descontextualizados de autores protestantes como J.N.D Kelly. Kelly afirmou explicitamente em sua obra que não havia evidência para acreditar que Agostinho via o bispo de Roma como supremo e infalível. Todavia o apologista católico copiou uma citação descontextualizada de Kelly para afirmar que Agostinho defendia a infalibilidade papal (veja aqui).

Diante disso tudo, qual a relevância do protestante em trazer autores que não mencionaram a tese?

Demonstrar que a tentativa católica de apresentar um consenso ou posição majoritária em favor de sua tese fracassou. Nesse último artigo, ele adotou um tom mais cuidadoso, mas no anterior, quis implicar que a maioria dos tomistas apoiava sua posição, o que não é verdade. E apesar de ter apresentado alguns nomes a mais, sua posição continua não sendo a majoritária.

São aqui mais 14 tomistas a favor de que São Tomás não era contrário ao dogma ou mudou de opinião, todas as obras estão referenciadas para quem quiser procurar, claro que não vamos citar todos aqui, pois seria um trabalho longo.

Errado mais uma vez: (1) Garrigou não afirma que todos esses são tomistas; (2) Ele apenas diz que para tais teólogos, Tomás foi favorável ao privilégio; (3) Garrigou não afirma que esses teólogos defenderam qualquer tipo de mudança (isso ficou por conta do apologista). Além do mais, a afirmação “são favoráveis ao privilégio” é no mínimo ambígua e não implica necessariamente na ideia de que Tomás afirmou explicitamente o dogma. Eles poderiam, assim como outros, estar expressando a ideia de que Aquino defendeu a pureza excelsa de Maria, o deixando muito próximo à definição dogmática (o que é um argumento falacioso).  

Sobre a “retificação” do site Corpus Thomisticus

Quem ler essa seção do artigo católico perceberá que não houve retificação alguma. Retificar é corrigir algo que estava errado e isso não aconteceu. O site apenas acrescentou um comentário afirmando que há outra versão com “nec originale”. Como isso pode ser uma retificação? Eles continuam hospedando uma versão que não contém o termo. Caso o apologista quisesse fazer um forte argumento de autoridade deveria convencer o autor do texto crítico a se retificar, o que obviamente não aconteceu e nem sabemos se seria possível. Além disso, nós apresentamos pelo menos duas versões desse texto desfavoráveis ao pleito católico. No mais, há muitos outros textos a serem “retificados” no corpus thomisticus. Como já vimos, eles têm o hábito de hospedar textos não muito simpáticos à causa católica.

Só resta agora ver onde o protestante vai dizer que está apoiado.

Além dos outros argumentos trazidos, vou continuar apoiado nas versões críticas do texto que não contém “nec originale”. Uma delas inclusive continua hospedada ..... adivinha onde? No site Corpus Thomisticus. No dia que eles se manifestarem oficialmente afirmando que a versão de Rossi está correta e as outras erradas e deixarem de hospedar a versão “errada”, ai sim o apologista tem fundamentos para afirmar que houve uma “retificação”. Quanto à manifestação do diretor do site, ele próprio afirma que questão é controversa. Parece-me algo bem diferente de afirmar que é certo. E o fato de pairar dúvidas importantes sobre a autenticidade do termo é um ponto central do nosso argumento.

Tomás acreditou na imaculada conceição no início da vida?

A tese de Garrigou é que Tomás acreditava na imaculada conceição no início de sua vida. Como evidência, é apresentada a seguinte citação da obra “Comentários das Sentenças de Pedro Lombardo”:

Ao terceiro, respondo dizendo que se consegue a pureza pelo afastamento do contrário: por isso, pode haver alguma criatura que, entre as realidades criadas, nenhum seja mais pura do que ela, se não houver nela nenhum contágio do pecado; e tal foi a pureza da Virgem Santa, que foi imune do pecado original e do atual. (I Sent., d. 44, q. 1, a. 3)

Essa é a citação apresentada pelo primeiro artigo do apologista católico. A expressão “imune do pecado original” parece apresentar um significado claro. Todavia, eu cometi o erro básico de não verificar essa citação para ver o contexto. O blog Conhecereis a Verdade trouxe na caixa de comentários a continuação:

Foi todavia sob Deus, visto que havia nela o poder de pecar.

Essa é uma tradução possível. Outra tradução seria potência do pecado. O apologista afirma que Maria não poderia ter sido imune ao pecado original se o tivesse contraído. Como não seria possível contrair o pecado original mais de uma vez, não há sentido em se falar de imunização. Maria necessariamente foi imune ao pecado original porque foi preservada de contraí-lo. Se a citação parasse ai, de fato seria a melhor explicação. No entanto, o que vem depois não se coaduna. Como é improvável que Tomás mantivesse uma contradição tão patente, alguma explicação que harmonize todos os dados precisa ser dada. Sobre a afirmação de que havia em Maria a potência do pecado, o apologista explica:

O autor protestante traduz o termo “potentiam ad peccatum” inexatamente, este significa “potência ao pecado”, e não “poder de pecar”, muito embora possa em algum contexto ser traduzido assim, mas no caso isso deve ser entendido como os Escolásticos entendiam. Fora isso o protestante tem que urgentemente estudar o que é “ato” e “potência” para os escolásticos, explicar isso aqui é demasiado extenso.

O problema do argumento protestante seria “não entender os escolásticos”. Mas como os escolásticos entendiam? “No momento não posso dizer, é demasiado extenso”. O motivo pelo qual não explica é bem simples, a definição de potência que os escolásticos adotavam (de acordo com a filosofia aristotélica) favorece a intepretação protestante. Diga-se de passagem, não é sequer “demasiado extenso” explicar. Ato é o que algo é num dado momento. Potência é a capacidade de algo se tornar outra coisa. Por exemplo, uma semente tem a potência de se tornar uma árvore. Isso quer dizer que Maria tinha a capacidade de pecar. Havia nela o potencial de se tornar uma pecadora, o que não a levou a cometer pecados pessoais porque teria sido purificada ainda no útero. Como o blog Conhecereis a Verdade bem disse, se Maria tinha a capacidade do pecado, ela necessariamente não foi livre do pecado original desde a concepção.

Parece que o apologista católico previu essa objeção. Como ele resolve o problema? Apelando a teoria da redenção preventiva de Duns Scoto. Maria teria sido redimida preventivamente. Esse argumento tem um grande problema. Tomás de Aquino nunca adotou a teoria da redençaõ preventiva. Um dos motivos pelos quais Tomás rejeitou a imaculada conceição é que para ele toda a raça humana deveria ser redimida. Se Maria não contraiu o pecado original, ela seria uma exceção e tornaria mentiroso o ensino bíblico de que toda a humanidade necessita de redenção. Isso foi claramente apontado pela Enciclopédia Católica:

No entanto, é difícil dizer que St. Tomás não exigia um instante, pelo menos, após a animação de Maria, antes de sua santificação. Sua grande dificuldade parece ter surgido a partir da dúvida de como ela poderia ter sido redimida se ela não tivesse pecado. Esta dificuldade levantou nada menos do que dez passagens em seus escritos (veja, por exemplo, Suma III: 27: 2, ad 2). Mas, enquanto St. Tomás, assim negou o ponto essencial da doutrina, ele próprio estabeleceu os princípios que, depois de terem sido reunidos e trabalhados permitiram a outras mentes fornecer a verdadeira solução desta dificuldade de suas próprias premissas. (Fonte)

A implicação lógica é que redenção preventiva não fazia parte do pensamento de Aquino. Percebam que ele expressou esse pensamento repetidas vezes numa obra posterior a que estamos discutido. E não há absolutamente nenhuma evidência de que acreditou na redenção preventiva e mudou de opinião. O erro crasso da explicação católica é ao invés de procurar justificar a tese em outros escritos de Tomás, preferiram importá-la de um teólogo que tinha um pensamento oposto na questão. Não por acaso, Scoto afirmou enquanto Aquino negou a imaculada conceição.

Mas e a questão da imunidade ao pecado original? Tendo em vista que: (1) Maria tinha o poder de pecar; (2) A redenção preventiva não é uma explicação cabível, a expressão “imune ao pecado original” não poderia significar “não ter contraído o pecado original”. A explicação mais plausível que coaduna com a própria citação e com todo o pensamento de Tomás é que Maria teria sido imune dos efeitos e não da contração do pecado original. O pecado original inclina o homem a cometer outros pecados. Segundo Tomás, quando Maria foi purificada ainda no útero, ela teria perdido a capacidade de cometer pecados (algo que todos os outros santos tinham). O apologista católico ainda respondeu:

Há potencia ao pecado pela própria natureza intrínseca de qualquer humano de poder pecar, mas a graça infundida em Maria não permitia ela pecar. Adão não tinha pecado original, mas ele tinha a potência ao pecado mesmo sendo feito limpo de qualquer pecado, e não pecou até determinado momento, porém Maria, mesmo tendo potência ao pecado, nasceu sem ele como Adão, e não pecou durante sua vida por consequência da Graça de Deus que necessitou mais do que qualquer um de nós, mas continuou com a potência.

Há uma contradição na explicação. Maria recebeu uma graça tão grande que não lhe permitia pecar, no entanto ela continuou com potência, ou seja, com a capacidade de pecar? É preciso escolher qual das duas manter. Ademais, o paralelo entre Maria e Adão é inadequado. Adão de fato não tinha o pecado original, portanto, não tinha uma inclinação inata ao pecado. No entanto, diferente de Maria, ele não recebeu nenhuma graça especial que lhe impedia de pecar. No pensamento de Tomás, Maria não continuou com a potência do pecado, mas deixou de tê-la quando foi purificada. Além do mais, Maria foi concebida como todos os outros seres humanos, e, portanto, diferente de Adão já estava sob o domínio do pecado original.

Conclusão

O meu argumento continua de pé. A tentativa de harmonizar um texto que claramente rejeita a imaculada conceição falhou totalmente. O apologista também não lidou com a questão da datação das obras – um ponto central do argumento dele. Ele simplesmente parte do pressuposto de que a interpolação é autêntica e deve guiar a interpretação do resto do texto. Porém, este é o jeito errado de fazer as coisas. O texto sobre o qual não há dúvidas tem precedência sobre o de origem duvidosa.

Ele também falhou em provar a existência de outros textos que apoiem a tese da mudança da opinião. Também falhou em trazer evidências suficientes favoráveis à autenticidade de “nec originale”. Ele se limitou a peneirar a evidência e trazer apenas a amostra conveniente como se isso fechasse a questão. Todo argumento em favor da autenticidade se baseia na autoridade de Rossi. A datação, antiguidade e até mesmo a amostra dos manuscritos depende da autoridade dele. Essa não é uma prova decisiva, uma vez que há outras edições críticas que seguem o caminho oposto.

Se o site católico deseja substanciar sua tese, tem as seguintes alternativas:

(1) Provar que a interpretação verdadeira não nega a imaculada conceição na saudação angélica (duvido que isso seja possível sem fazer outro “duplo twist carpado”);

(2) Provar que existe uma contradição explícita – algo que até mesmo os defensores da “tese da mudança” consideram inaceitável;

(3) Provar a falsidade do trecho que nega o dogma. Improvável que o faça uma vez que até mesmo Rossi e Garrigou afirmam a autenticidade.

Tomás é apenas um exemplo entre os muitos teólogos, papas e pais da igreja que negaram a imaculada conceição. A tentativa católica é um exemplo prático da Sola Eclesia que Inácio de Loyola sintetizou em tão poucas palavras:

Acredito que o branco que eu vejo é negro, se a hierarquia da igreja assim o tiver determinado.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

A Mulher de Apocalipse 12 e os Pais da Igreja


A identidade da mulher de Apocalipse 12 provoca muita polêmica. Há três respostas sobre sua identidade. Ela seria a igreja (posição que pessoalmente adoto), Israel ou Maria (posição católica romana). O papa Pio XII afirmou na bula “Munificentissimus Deus”:

Os doutores escolásticos vislumbram igualmente a assunção da Mãe de Deus não só em várias figuras do Antigo Testamento, mas também naquela mulher, revestida de sol, que o apóstolo s. João contemplou na ilha de Patmos (Ap 12, ls.). (Fonte)

A interpretação patrística mais antiga e numerosa aponta a igreja. Uma argumentação bíblica que aponta Israel pode ser vista aqui. A interpretação mais antiga vem de Hipólito. Ele escreveu no início do séc. III e era presbítero em Roma:

Sobre a tribulação da perseguição que deve cair sobre a Igreja por parte do adversário, João também assim fala: ‘E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz. (...) Pela ‘mulher vestida de sol’ ele tinha em vista a Igreja, vestida com a palavra do Pai, cujo brilho está acima do sol. E pela ‘lua debaixo de seus pés’, referiu-se ao fato dela está adornada como a lua, com a glória celeste. As palavras ‘uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça’ referem-se aos doze apóstolos por quem a Igreja foi fundada. E quanto às palavras ‘estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz’, significam que a Igreja não cessará de dar a luz de seu coração ao Verbo que é perseguido pelos descrentes do mundo. (Tratado sobre Cristo e o Anticristo, Capítulo 60 e 61)

Pouco tempo depois, ainda no terceiro século, escreveu Metódio de Olimpo:

A mulher que apareceu no céu vestida com o sol, e coroada com doze estrelas, e tendo a lua aos seus pés, e estando com o filho e dores de parto, é certamente de acordo com a interpretação mais precisa nossa mãe, ó virgens, sendo em poder distinta de seus filhos; a quem os profetas, de acordo com o aspecto de seus súditos, têm chamado algumas vezes de Jerusalém, por vezes, uma noiva, por vezes, Monte Sião, e às vezes o Templo e o Tabernáculo de Deus (...) É a Igreja cujos filhos virão a ela com toda a velocidade depois da ressurreição, correndo a ela por todos os lados. (O Banquete das Dez Virgens, Discurso 8:5)

Vitorino de Petau, também escrevendo na segunda metade do séc. III, afirmou:

A mulher vestida com o sol, que tem a lua debaixo dos seus pés e usa uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça, e tem dores em seu parto, é a antiga Igreja dos pais, profetas, santos e apóstolos, que tinha os gemidos e tormentos do seu desejo, até que viram que Cristo, o fruto do seu povo segundo a carne muito prometida a ele, carne tomada do mesmo povo (...) e a coroa de doze estrelas significa o coro dos pais, de acordo com o nascimento carnal, de quem Cristo tomou a carne. (Comentário sobre o Apocalipse do Abençoado João 12:1-2)

Nota-se que por igreja ele engloba também os crentes da antiga aliança. Também diz que a fuga da mulher para o deserto ainda não havia acontecido:

Embora, portanto, possa significar esta mulher, mostra-a depois voando quando sua prole é trazida, porque ambas as coisas não acontecem de uma só vez, pois sabemos que Cristo nasceu, mas que chegaria o tempo em que ele deveria fugir da face da serpente: sabemos que isso não aconteceu ainda. (Comentário sobre o Apocalipse do Beato João 12:16)

Se a fuga do deserto não havia acontecido e estamos falando de tempos após a morte de Maria, a mulher não poderia ser Maria.

O papa Gregório o Grande, escrevendo no séc. VI, afirmou:

Na Sagrada Escritura quando o "sol" é usado em sentido figurado, às vezes é para designar o Senhor, às vezes a perseguição ou a exibição de uma visão clara de qualquer coisa, mas também a sabedoria do sábio. Por "sol" o Senhor é tipificado, como se diz no Livro da Sabedoria, para que todos os ímpios no dia do juízo final, sabendo de sua própria condenação, venham a dizer: "Nós temos nos desviado do caminho da verdade e a luz da justiça não resplandece em nós e o sol não se levantou sobre nós" [Sabedoria 5:6]. Como se diz claramente: O raio de luz não brilhou dentro de nós. Também onde João diz: "Uma mulher vestida com o sol e a lua debaixo dos seus pés" [Apocalipse. 12:1]. Pelo "sol" é entendida a iluminação da verdade, mas pela lua, a qual diminui e é preenchida a cada mês, a mutabilidade das coisas temporais. Mas a Santa Igreja, porque é protegida com o esplendor da luz celestial, está revestida, por assim dizer, com o sol; mas, porque ela despreza todas as coisas temporais, ela tem a lua debaixo dos seus pés. (Moral, Livro 34, cap. 25)

André de Cesareia – um teólogo do séc. VI – escreveu o mais antigo comentário completo sobre o apocalipse disponível atualmente:

Apocalipse 12:1 e um grande sinal foi visto no céu: uma mulher que se vestiu do sol, e [a] lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Alguns, por um lado, tinha entendido essa mulher como sendo a Teotokos antes do nascimento divino ser conhecido por ela, (antes de ela) experimentar as coisas que aconteceriam. Mas o grande Metódio tomou como se referindo à santa Igreja, considerando estas coisas a respeito dela (a mulher) como sendo incongruentes com a geração do Mestre pela razão de que o Senhor tinha nascido muito antes (...) E na continuação: "pois cada um em Cristo é nascido mentalmente. Por isso, a Igreja está inchada e com muita dor, até que Cristo nasça e seja formado em nós, para que cada um participando de Cristo se torne Cristo." Além disso, a Igreja tem sido vestida com o Sol da Justiça e a luz da lua que brilha à noite e altera a vida secular como se a lua estivesse dominada sob os pés, e ao redor de sua cabeça (está) a coroa dos preceitos e virtudes apostólicas. Uma vez que (é) a partir da lua que substância líquida depende, o mesmo (Metódio) também diz que pela lua se entende o batismo, figurativamente chamado de "mar", que (é) por um lado a salvação para aqueles que renascem e, por outro lado ruína para os demônios. (Comentário sobre Apocalipse 12:1 - traduzido por Eugenia Constatinou)

Essa citação é interessante por que André basicamente apela à interpretação de Metódio. Trata-se de um exemplo de tradição interpretativa da igreja perfeitamente compatível com a Sola Scriptura. Um pai da igreja mais tardio apela ao mais antigo, sem considera-lo um intérprete infalível. André ainda menciona a interpretação Mariana como incompatível com a passagem. Para ele, não seria possível identificar a mulher com Maria ou a Igreja simultaneamente. Esse comentário pode parecer óbvio, mas se faz necessário porque muitos católicos procuram “salvar” a interpretação romanista dessa forma. 

Tomás de Aquino traz o comentário de Rábano Mauro – um teólogo do séc. IX – portanto não considerado um pai da igreja:

Rábano e Tertuliano, cont. Marc. IV, 13: Este número é caracterizado por muitas coisas no Antigo Testamento; pelos doze filhos de Jacó, pelos doze príncipes dos filhos de Israel, pelas doze fontes de corrida em Helim, pelas doze pedras no escudo de Arão, pelos doze pães da festa da proposição, pelos doze espiões enviados por Moisés, pelas doze pedras pelas quais o altar foi feito, pelas doze pedras tomadas do Jordão, pelos doze bois descobertos pelo mar de bronze. Também no Novo Testamento, pelas doze estrelas na coroa da noiva, pelos doze fundamentos de Jerusalém, que João viu, e seus doze portões. (Rábano de acordo com Aquino, sobre Mateus 10:1-4)

A mulher de Apocalipse 12 tem uma coroa com doze estrelas. Rábano pensa que a mulher era a noiva. Todos sabem que “noiva” é um termo comumente utilizado para se referir à igreja e não à Maria.

A Enciclopédia Católica traz o reconhecimento do Cardeal Newman:

Cardeal Newman considera duas dificuldades contra a interpretação anterior da visão da mulher e da criança: em primeiro lugar, diz-se ser pobremente suportada pelos Pais (...) (Fonte)

Obviamente, Newman tenta contornar esse problema, mas reconhece que de fato a interpretação católica tem pouco suporte patrístico. O comentário bíblico Jerônimo, produzido pelos maiores eruditos bíblicos católicos do séc. XX afirma:

A maioria dos comentaristas antigos a identificou como a Igreja. Na Idade Média, foi amplamente difundido que ela representava Maria, a Mãe de Jesus. Exegetas modernos têm geralmente adotado a interpretação mais antiga, com algumas modificações. Nos últimos anos, vários católicos têm defendido a interpretação mariana. Numerosos detalhes contextuais, no entanto, são inadequados para tal explicação. Por exemplo, dificilmente poderíamos pensar que Maria suportou a pior das dores de parto (v. 2), que foi perseguida no deserto após o nascimento de seu filho (v. 6, 13), ou, finalmente, que ela foi perseguida  através de seus outros filhos (v. 17). A ênfase sobre a perseguição da mulher é realmente apropriado somente se ela representa a Igreja, que é apresentado ao longo do livro como oprimida pelas forças do mal, ainda que protegida por Deus. Além disso, a imagem de uma mulher é comum na antiga literatura secular Oriental, bem como na Bíblia (Isaías 50:1 e Jeremias 50:12) como símbolo para um povo, uma nação ou uma cidade. É apropriado, então, ver nesta mulher o povo de Deus, o verdadeiro Israel do AT e NT. (D’Argon J-L. “The Apocalypse.” The Jerome Biblical Commentary, ed. Raymond E. Brown, Joseph A. Fitzmyer, Roland E. Murphy [London: Geoffrey Chapman, 1969])

A posição mais antiga e defensável identifica a mulher como a igreja, incluindo não somente os crentes da nova aliança, mas também da antiga.

A interpretação Mariana

O primeiro pai da igreja a mencionar a interpretação mariana foi Epifânio que escreveu no séc. IV:

A Escritura não nos diz se Maria morreu ou não. A Escritura é silente sobre isso por causa do extraordinário milagre da sua partida (...) Alguns entendem a profecia de Simeão [Lc. 2:35] como significando que ela era seria espada transpassada por uma espada. Por outro lado, ela pode ter sido isenta da morte, pois o que João nos diz em Apocalipse pode ter se cumprido nela: "e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho" [Ap. 12:4]. De minha parte, eu não direi nem que ela permaneceu imortal ou que ela morreu. Eu me abstenho porque a Escritura que transcende a compreensão da mente humana deixou esta questão na escuridão para a honra de seu corpo. (Panarion 78, 11, 3-4)

Mas em outros lugares, no Apocalipse de João, lemos que o dragão se atirou para a mulher que tinha dado à luz uma criança do sexo masculino; mas as asas de uma águia foram dadas à mulher, e ela voou para o deserto, onde o dragão não poderia alcançá-la. (Apocalipse 12: 13-14). Isso poderia ter acontecido com Maria no caso. (Ibid)

Epifânio pessoalmente não endossa a interpretação. Ele se limita a afirmar a sua possibilidade. Ele expressa total dúvida sobre o fim da vida de Maria bem como sua identificação como a mulher de Apocalipse 12. Fica claro que não endossa tal interpretação quando afirma que a Escritura é silente, por isso ele pessoalmente não assumiria uma posição. O historiador da igreja Steve Puluka afirma:

Esta passagem menciona apenas que existe a associação sem realmente endossar essa visão. Ele qualifica a identificação com [Maria] ousando não afirmá-la com certeza absoluta. (Fonte)

O primeiro de fato a defender tal interpretação foi Quodvultdeus de Cartago, que escrevendo no sec. V, afirmou:

No Apocalipse do apóstolo João está escrito que o dragão estava em plena vista da mulher prestes a dar à luz, a fim de que, quando desse à luz, ele iria comer a criança nascida [dela]. Que nenhum de vocês ignore [o fato de] que o dragão é o diabo; e saibam que a virgem significa Maria, a casta, que deu à luz a nossa cabeça casta. Ela também incorpora em si mesma uma figura da Santa Igreja, a saber: mesmo tendo um filho, ela permaneceu virgem, assim a igreja ao longo do tempo carrega seus membros, mas não perde sua virgindade. (Terceira Homilia sobre o Credo)

Esse teólogo era amigo e discípulo de Agostinho. Por conta disso, alguns argumentam que essa deveria ser a interpretação agostiniana. Como não há nos numerosos textos do bispo de Hipona qualquer menção a essa interpretação, trata-se de um argumento frágil. Todavia, a posição de Quodvultdeus não era a mesma do moderno romanismo. Eric Svendsen escreve:

Além disso, as palavras de Quodvultdeus devem ser mantidas em contexto. Suas palavras são tiradas de um trabalho que tenta mostrar que tipos e figuras permeiam o texto bíblico. Se alguém está à procura de um "tipo" no simbolismo da mulher que dá à luz ao Messias em Apocalipse 12, não se pode deixar de ver Maria. No entanto, mesmo aqui Quodvultdeus tem o cuidado de distinguir o simbolismo do "dragão", que ele diz que é o diabo (ou seja, João especificamente o identifica como tal), e a "mulher", que ele diz que "significa" Maria, que representa igreja, que Quodvultdeus vê como o verdadeiro simbolismo de João nesta passagem. Em outras palavras, Quodvultdeus vê Maria não como referente primária, mas somente como uma referência derivada. Isto está muito longe da crença popular entre os estudiosos católicos conservadores e apologistas que simbolismo mariano é a intenção de João nesta passagem. (Who Is My Mother? [Amityville, New York: Calvary Press, 2001], pp. 204-205)

O erudito bíblico católico Raymond Brown acertadamente escreveu:

O fato de que a ênfase Mariológica em Apocalipse 12 é relativamente recente levanta a questão de saber se representa uma exegese do texto em si ou simplesmente uma imaginativa aplicação teológica como parte de uma busca de apoio bíblico para doutrina mariana [Brown et al, 1978: 236] (Ibid., p. 206)