segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Orígenes contra a oração aos santos e anjos




Orígenes é central no debate sobre a doutrina romana da intercessão dos santos na Igreja Primitiva. Ele foi o primeiro pai da igreja a dizer que os crentes no céu oram pela Igreja na terra, mas condenou explicitamente as orações não feitas a Deus. Duas obras são de maior importância: “Conta Celso” e o tratado “Sobre a Oração”. Irei utilizar como pano de fundo a resposta de um católico ao meu artigo anterior sobre os Pais anteriores a Niceia e a oração aos santos e anjos (aqui). O artigo católico a qual respondo está aqui. Ainda nesta semana publicarei outro artigo abordando os demais pais da Igreja. Os comentários do apologista católico estarão em vermelho. Ele afirmou:

“Eu penso que “Súplica” seja a forma de oração que um homem em alguma necessidade oferece com rogo para sua realização; “Oração“, o que um homem oferece no sentido mais elevado para as coisas superiores com a atribuição da glória; “Intercessão“, o endereçamento da pretensão a Deus por um homem que possui uma certa confiança mais plena;  “Ação de graças“, o reconhecimento do orante da obtenção de bênçãos de Deus, [isto é] aquele que retorna o reconhecimento sendo impressionado pela grandeza, ou o que parece ao destinatário a grandeza, dos benefícios conferidos.” (Orígenes de Alexandria, Tratado Sobre a Oração, 12,2 [IX na versão online da tertullian.org])

A versão referenciada por ele está hospedada no site tertulian.org (aqui). Trata-se da mesma versão da coleção patrística de Philip Shcaff (aqui). Acredito que não haja tradução em português desta obra, mas há uma versão em espanhol (aqui), que utilizei em minhas traduções. Orígenes se baseia em 1 Timóteo 2:1 para descrever os quatro tipos de oração. Após isso, ele passa a dar vários exemplos bíblicos desses quatro tipos: súplica (pode ser traduzido como petição), oração (a tradução espanhola usa o termo adoração – louvores também poderia ser utilizado – essa tradução é mais adequada pois transmite o sentido que o autor quis dar: o louvor e a adoração a Deus), intercessão e ação de graças. O argumento católico é que sempre que Orígenes afirma que a oração deve ser direcionada somente a Deus, ele tem em mente apenas esse sentido estrito – dar louvores ou adorar a Deus. Para referendar isso, ele traz outra citação da mesma obra:

Agora, súplicas, ações de graças e intercessões podem ser oferecidas para as pessoas sem impropriedade. Dois deles, ou seja intercessão e ação de graças, podem ser oferecido não só para os santos, mas para pessoas sozinhas, em geral, ao passo que a súplica deve ser oferecida aos santos somente, se um Paulo ou um Pedro forem encontrados, podem beneficiar-nos e fazer-nos dignos para atingir autoridade para o perdão dos pecados.” (Orígenes de Alexandria, Tratado Sobre a Oração, 14,6 [X, na versão online da tertullian.org]; PG 11,464)

Essa não é a tradução mais exata da obra hospedada na página referenciada por ele. A versão em inglês traz o seguinte:

Now request and intercession and thanksgiving, it is not out of place to offer even to men—the two latter, intercession and thanksgiving, not only to saintly men but also to others.
A tradução mais exata seria:

Agora, petições (ou súplicas), intercessão e ações de graça, não é fora de lugar oferecer mesmo para homens. Os dois últimos, intercessão e ações de graça, não somente para homens santos mas também para outros.

A continuação seria:

But request to saints alone, should some Paul or Peter appear, to benefit us by making us worthy to obtain the authority which has been given to them to forgive sins—with this addition indeed that, even should a man not be a saint and we have wronged him, we are permitted our becoming conscious of our sin against him to make request even of such, that he extend pardon to us who have wronged him.

Mas peça aos santos somente, se algum Paulo ou Pedro aparecer para nos beneficiar nos tornando dignos da autoridade que lhes foi dada para perdoar os pecados. Mas também, se ofendermos alguém que não seja santo e tomarmos consciência de nosso pecado contra ele, nos é permitido pedir mesmo a ele que estenda perdão a nós que temos ofendido a ele.

A tradução a partir da versão em espanhol é ligeiramente diferente:

Não é sem razão dirigir petições, suplicas e ações de graças aos santos. Súplicas e ações de graças não só para os santos, mas também para os homens. No entanto, petições somente aos santos, se encontrássemos um Paulo ou Pedro que nos ajude a merecer os frutos do poder que eles tinham de perdoar pecados (Mt 9:6, Jo 20:23). Mas também, se ofendermos alguém que não é santo, quando percebemos que temos ofendido, lhe pedimos perdão.

O apologista conclui então seu argumento:

Orígenes distingue aí os homens vivos dos santos (que por citar S. Pedro e S. Paulo, entende-se que são os santos já falecidos). Percebe-se também que dos quatro tipos de petições, Orígenes autorizou serem atribuídas aos homens apenas três: “súplicas, ações de graças e intercessões”. Já a quarta, a “oração”, para Orígenes, não tem o mesmo significado que estamos habituados. Para nós “orar” é o mesmo que “suplicar”. Para Orígenes, “orar” é “oferecer no sentido mais elevado para as coisas superiores com a atribuição da glória”, algo que, segundo ele, deve ser atribuído apenas para Deus Pai, e nem mesmo à Cristo:

Ou seja, todas as vezes que Orígenes diz que a oração deve ser dirigida somente a Deus, é somente a oração de adoração e louvor que ele tem em mente. As demais orações (súplica, ação de graças e intercessão) poderia ser dirigida a homens. O argumento tem as seguintes falhas:

 (1) É totalmente falso a equiparação de que ele faz de santos = pessoas falecidas. O católico moderno usa o termo santo para se referir a pessoas que já morreram, mas Orígenes faz o mesmo uso que os apóstolos faziam -  santos eram os membros vivos da Igreja. Todas as vezes que Orígenes se refere a santos em sua obra, ele tem em mente pessoas vivas ou se refere a textos bíblicos que obviamente se referiam a pessoas vivas. Vejam os exemplos abaixo:

“Ademais, penso que as palavras das orações dos santos têm grande poder porque oram com espírito e mente” (1 Cor. 14:15) (Tratado sobre a Oração Cap. 12).
O texto se refere às palavras de Paulo referindo-se a si mesmo.

“A única maneira de entender o mandato de “orar sempre” (1 Tes. 5:17), tendo em conta nossas limitações, é considerar que a vida do santo é em conjunto uma grande oração” (Ibid)

Orígenes obviamente se refere a pessoas vivas quando diz “nossas limitações”.
“Com frequência, o Senhor favorece aos santos "rompendo os dentes dos leões e diluindo seus inimigos como águas que passam" (Sl 58:7) (Cap. 12)

Aqui só pode se referir a pessoas vivas, uma vez que os cristãos no céu não passam por tribulações.

“Já que temos falado dos benefícios que pela oração recebem os santos” (Cap. 14)

Orígenes se refere aos vários benefícios que a oração traz aos crentes. Obviamente tal descrição não faria sentido, se estes crentes estivessem no céu.

“Portanto, quando os santos estão reunidos há uma dupla igreja ou assembleia: a dos homens e a dos anjos.” (Cap. 31)

Orígenes se refere às reuniões da Igreja, portanto obviamente se refere a vivos.

“O poder de Jesus, o espírito de Paulo e outros como ele, os anjos do Senhor protegem cada um dos santos, os acompanham em seus caminhos e se encontram com aqueles que se congregam piedosamente.” (Cap. 31)

Aqui está claríssimo pois Orígenes diferencia “o espírito de Paulo e outros como ele” e os “santos que se congregam”.

Achei necessário falar dessas coisas ao lidar com o lugar da oração e recomendar que seja preferível fazer nas assembleias dos santos reunidas com grande reverência na igreja. (Cap. 31)

Santos = pessoas vivas. Orígenes menciona a intercessão do Espírito Santo pelos “santos” (Cap. 1). Obviamente os santos no céu não precisam dessa intercessão e o pai da Igreja tem em mente o texto paulino que se refere a pessoas vivas.

“Cristo diz o mesmo quando ele afirma que está doente em cada um dos santos doentes e, de maneira semelhante, no prisioneiro, nu, convidado, com fome e sede” (Mt 25: 35-40)
Obviamente santos no céu não poderiam estar doentes.

Quem se der ao trabalho de ler o tratado perceberá que Orígenes utiliza o termo “santos” para se referir aos vivos, mas quando faz se referindo aos falecidos, faz questão de qualificar o termo:

“Da mesma forma [oram pelos crentes], as almas dos santos que já descansaram. Isto é provado pela passagem de Rafael oferecendo ao Senhor um sacrifício espiritual para Tobias e Sara.”

Esse texto foi de forma expandida citado pelo católico. Nele, Orígenes afirma que a Igreja ora juntamente com os santos falecidos e os anjos. Ele cita então passagens dos apócrifos de Tobias (o anjo Rafael ajuda Sara e Tobias) e II Macabeus (Jeremias aparece e dá uma espada a Judas Macabeus). Note que Orígenes não está dizendo que se deve orar aos anjos ou santos, nem as passagens apócrifas citadas dizem isso. Em ambos os casos, as pessoas suplicaram a Deus, e Ele enviou anjos em socorro dos suplicantes. O ponto nevrálgico é que Orígenes faz questão de qualificar os santos “que já descansaram”, uma vez que o uso padrão da palavra refere-se aos vivos.

Outro santo, já falecido, testificou: "Este é aquele que ama seus irmãos, que reza muito por seu povo e pela cidade sagrada. Jeremias, o profeta de Deus" (2 Macc 15:14).

Ele faz questão de qualificar o santo como “falecido”, o que só faria sentido se o uso geral do termo fosse para pessoas vivas. Dessa forma, se devemos entender santos na citação oferecida pelo católico como pessoas já falecidas, ele precisa oferecer evidência para isso.
Além disso, a citação analisada continua com o seguinte trecho “se ofendermos alguém que não seja santo”. Isso demonstra que provavelmente o termo santo não tinha em mente pessoas falecidas, afinal porque ele iria qualificar o homem ofendido como não santo? Isso pressuporia que nós poderíamos ofender uma pessoa que já morreu. No entanto, se você toma santos como incluindo também pessoas vivas, faz sentido, pois Orígenes estaria diferenciando aqueles que fazem parte da Igreja (santos) e não santos (incrédulos).

O único argumento trago pelo católico em favor de sua interpretação é que Orígenes cita Pedro e Paulo, portanto, “santos” seria uma referência a falecidos. Além de ir contra o contexto imediato e o de toda obra, o apologista não lida com o fato de se trata de uma situação hipotética.  Mesmo na tradução do católico, é dito se “um Paulo ou Pedro for encontrado”. A explicação do católico é a seguinte:

Orígenes fala que se deve “encontrar” ALGUÉM COMO PEDRO OU PAULO (SANTOS) para se fazer súplicas e sermos beneficiados, não no sentido físico, mas sim espiritual, assim como nós católicos precisamos “encontrar” algum santo para termos devoção e lhe dirigirmos nossas súplicas.

O texto não diz “alguém como”. A própria tradução que ele trouxe não contém isso. No entanto diz “encontrar algum Pedro ou Paulo”. Na explicação do católico “encontrar” seria escolher o seu santo para orar a ele. Este é um uso muito estranho e improvável para o termo. Ademais, o texto não diz que devemos suplicar a Pedro ou Paulo por nossas necessidades. Ele diz que SE (hipótese) encontrássemos Pedro ou Paulo nós poderíamos ser beneficiados por eles para termos a autoridade que eles tinham para perdoar pecados. Não diz absolutamente nada de suplicar a eles em favor de nossas necessidades. Pior ainda, se Orígenes está se referindo a escolher o seu santo predileto, porque ele trataria isso como uma hipótese ainda mais tendo dois apóstolos como exemplo? Ora, supondo que eles adotassem a doutrina romana, os cristãos de Alexandria já teriam plena certeza do poder intercessório de Pedro e Paulo. Não tratar-se-ia de algo hipotético, mas um fato. Obviamente que se alguém tivesse um encontro com Paulo ou Pedro, ele poderia lhe fazer petições, mas isso não equivaleria a orar.

(2) A falha fatal do argumento católico é que ele mesmo não entendeu o que Orígenes queria dizer na seguinte citação:

Se entendemos a oração no sentido mais estrito, não devemos nos dirigir a qualquer ser criado, nem mesmo a Cristo homem; apenas a Deus, o Pai universal a quem nosso Salvador orou como foi dito e Ele mesmo nos ensinou a orar. Pois quando ele ouviu "ensinar-nos a orar", ele não nos ensinou a nos dirigir a nós mesmos, mas ao Pai, dizendo: "Pai nosso, que estás nos céus" (Lc 11, 1, Mt 6,5). (Cap. 15)

O apologista católico afirma que “a oração no sentido mais estrito” seria o tipo de oração oferecendo louvor e adoração já referida por Orígenes em outra parte. O apologista erra quando afirma o seguinte:

Para nós “orar” é o mesmo que “suplicar”. Para Orígenes, “orar” é “oferecer no sentido mais elevado para as coisas superiores com a atribuição da glória”, algo que, segundo ele, deve ser atribuído apenas para Deus Pai, e nem mesmo à Cristo:

Ele erra, pois quando Orígenes trata da oração em sentido estrito, ele também tem em mente a súplica, a petição e intercessão. Ele tem em mente o mesmo conceito de oração que nós temos. Mas qual a diferença então?

Quando Orígenes afirma que podemos oferecer petições e ações de graça aos homens em geral (e até mesmo o católico concorda que são pessoas vivas), ele não tem em mente o que nós entendemos por oração. Caso contrário, estaríamos afirmando para ele, um cristão poderia entrar no seu quarto, se ajoelhar e orar para um pagão lhe pedindo alguma ajuda. É totalmente absurdo né. Pois foi exatamente isso que o argumento católico implicou. Até mesmo para a Igreja Romana, isso seria um enorme desvio, pois não se ora a pessoas vivas. Nós oramos a Deus em favor de nossos irmãos na fé, mas não oramos a eles. Até mesmo um romanista não reza para outra romanista para que este ore a Deus. Isso seria telepatia. Eu posso pedir para que outro cristão ore por mim e para isso terei que fazer uso de alguma forma de comunicação. Da mesma eu posso pedir que um irmão na fé me abençoe de alguma forma. É isso que Orígenes chama de suplica feita aos homens. Ele tem em mente as relações terrenas. É isso que ele entende como oração em sentido amplo. De forma a deixar isso bem claro, vamos dar uma olhada no seguinte trecho da citação:

Mas peça [suplique] aos santos somente, se algum Paulo ou Pedro aparecer para nos beneficiar nos tornando dignos da autoridade que lhes foi dada para perdoar os pecados. Mas também, se ofendermos alguém que não seja santo e tomarmos consciência de nosso pecado contra ele, nos é permitido pedir [suplicar] mesmo a ele que estenda perdão a nós que temos ofendido a ele. (Cap. 14)

Percebam o argumento. Na situação hipotética de Pedro e Paulo aparecerem, nós deveríamos suplicar a eles caso quiséssemos obter a autoridade que eles tinham de perdoar os pecados. Como já disse, Orígenes tem em mente uma aparição dos Apóstolos. Depois, Orígenes descreve uma situação em que poderíamos suplicar a alguém que não era um santo. E qual a situação? Pedir perdão a um homem que nós ofendemos. Vejam que o alexandrino chama um pedido de perdão de súplica. Obviamente, modernamente isso não seria considerado uma oração e nem o é em sentido bíblico, mas Ele o considerava oração em sentido amplo. Ele estabelece a exceção onde a súplica poderia ser dirigida mesmo a um pagão e o que ele chama de súplica nada mais é do que um pedido de perdão. Por isso, o que Orígenes chama de oração em sentido estrito nada mais é do que o que nós entendemos atualmente como oração. É elevar nossa alma e mente a Deus e lhe direcionar palavras que podem ser de louvor, pedido ou agradecimento.

Ademais, se a oração em sentido estrito queria dizer somente oração de louvor e adoração, Orígenes não teria motivos para dizer que não poderíamos orar a Cristo, pois ele tinha a plena compreensão de que Cristo era Deus, sendo, portanto digno de louvor e adoração. O argumento de Orígenes é no sentido que Cristo se subordinou ao Pai e orou a ele, por isso nós também deveríamos orar ao Pai. Se nem a Cristo a oração poderia ser dirigida, obviamente não poderia ser dirigida a santos ou anjos. Quando analisamos a citação em seu contexto, fica muito claro:

Se entendemos a oração no sentido mais estrito, não devemos dirigirmos a nenhum ser criado, nem sequer ao Cristo Homem, apenas a Deus, Pai universal a quem orava nosso salvador como está dito e a nos mesmos nos ensinou a orar. Porque quando "ensinou a orar" não nos ensina a dirigirmos a si mesmo, mas ao Pai, dizendo: "Pai nosso que estás no céu" (Lc.11,1, Mt. 6,5) (Cap. 14)

O fundamento de Orígenes era o exemplo dado pelo próprio Cristo que na oração do Pai Nosso nos ensina a se dirigir a Deus e não a si mesmo. Aqui o argumento católico mais uma vez se demonstra problemático, uma vez que a oração do Pai Nosso também é uma oração de súplica. Se esse tipo de oração poderia ser dirigida aos santos, porque Orígenes a usaria como exemplo para ensinar que se deveria orar somente a Deus? Nos versos seguintes Orígenes responde porque não era correto orar aos dois:

Pois se, como alguns arrazoam, o Filho é uma pessoa diferente do Pai, segue-se que a oração deve ser direcionada ao Filho e não ao Pai, ou para os dois, ou para o Pai somente. Todos concordam que a primeira possibilidade, orar ao Filho e não ao Pai, é uma afirmação absurda contra todas as evidências. Se tivéssemos de nos dirigir para ambos, é claro que deveríamos fazê-lo no plural dizendo em nossa oração: "Ajude-nos, nos beneficie, conceda-nos, mantenha-nos, etc." A realidade é que as fórmulas de oração estão em total desacordo com essa ideia. Ninguém poderia encontrar nas Escrituras orações dirigidas a esse pluralismo. (Cap. 14)

Mais uma vez ele recorre aos muitos exemplos bíblicos de oração. Como a Escritura não traz nenhum exemplo de oração dirigida no plural (e aqui ele se refere a toda a Escritura que obviamente trata dos quatro tipos de oração), a oração deveria ser somente a Deus (no singular). Percebam como esse Pai da Igreja é diferente dos romanistas. Para ele, a simples ausência de uma prática na Escritura era suficiente para não adotá-la. Todo o tratado de Orígenes é fundamentado em citações bíblicas. Ele inclusive traz exemplos bíblicos de súplicas, intercessões, ações de graça e louvor. Em todos esses, as orações são dirigidas a Deus e não somente as de louvor como quer fazer parecer o apologista. Orígenes não cita um único exemplo que seja de oração dirigida a anjos ou santos em qualquer de suas obras. Limitar todas essas citações a apenas orações de Louvor e adoração é absurdo, pois em nenhum momento Orígenes delimita dessa forma. O apologista católico simplesmente pegou dois trechos da obra de Orígenes e fez uma conexão que o próprio autor não fez e vai contra toda o conteúdo do tratado. A continuação é mais esclarecedora ainda:

É por isso que, quando os santos em suas orações dão graças a Deus, eles o fazem por meio de Cristo Jesus. Se é verdade que a oração corretamente não deve ser dirigida a um que também esteja orando, mas ao Pai, a quem nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou a direcionar nossa oração, não é menos verdade que a oração não deve ser dirigida ao Pai sem o Filho. (Cap. 14)

Ele obviamente usa o termo “santos” como referência aos cristãos da Igreja. Vejam que ele trata da oração de ação de graças – um tipo que segundo o católico poderia ser dirigida aos santos. Todavia, nesse contexto, ele diz: “a oração corretamente não deve ser dirigida a um que também esteja orando, mas ao Pai”. Então, os santos (que também oram) não poderiam ser os destinatários das orações. O alexandrino não exclui Jesus do processo, a oração deve ser dirigida a Deus, mas em nome de Jesus que é o nosso sumo sacerdote. Mais adiante, Orígenes dá uma série de exemplos bíblicos de orações que devem ser direcionadas ao Pai e não ao filho. O detalhe importante é que tais orações são na maioria dos casos súplicas ou ações de graça. Dessa forma, a tese de que Orígenes estava se referindo somente a orações de louvor cai por terra:

Ele mesmo diz claramente: "Eu vos asseguro: o que pedirem ao Pai em meu nome, Ele lhes dará. Até agora vocês nada pediram em meu nome. Peçam e receberão, para que sua alegria seja completa" (Jo 16:23-24). Eu não digo "peçam a mim" ou simplesmente "peçam ao pai", mas "o que você pede ao Pai em meu nome Ele vos dará". Porque até quando Jesus ensinou isso, ninguém havia pedido ao Pai em nome do Filho. Era verdade o que Jesus disse: "Até agora vocês não pediram nada em meu nome". Verdade também: "Peçam e vocês receberão, para que sua alegria esteja cheia" (...) Cristo disse: "Por que vocês me chamam de bom? Ninguém é bom senão Deus" (Mc 10:18, Lc 18:19, Mt 19:17). Ele também diria: "Por que você se dirige a mim em oração? Você deve orar apenas ao Pai, para quem eu oro. Isto é o que você aprende das Sagradas Escrituras. Pois você não deve dirigir-se ao Sumo Sacerdote designado pelo Pai em teu favor (Hb 8: 3), nem ao advogado que o Pai ordenou para orar por você (1 Jn 2:1). Você deve orar através do Sumo Sacerdote e advogado, capaz de se compadecer com suas fraquezas por ter sido tentado da mesma forma que nós, exceto no pecado (Heb, 12), porque o Pai a si mesmo lhe deu. Considere o quão grande é o presente quando recebeste o Espírito de filiação (Rm 8:15) quando vocês renasceram em mim, para que se chamem filhos de Deus e meus irmãos. Você leu o que eu disse pela boca de Davi ao Pai: "Anunciei seu nome a meus irmãos, eu o louvarei no meio da assembleia" (Sl 22:22, Heb 2: 12). Não é razoável para aqueles que foram julgados dignos de ser filhos do mesmo Pai orar ao irmão. Vocês devem, portanto, se dirigirem comigo e através de mim somente ao Pai". (Cap. 14)

Orígenes traz vários versículos que tratam de orações de súplica para fundamentar o argumento de que se deve orar apenas ao Pai. Ele encerra o argumento não dando qualquer margem para oração aos santos. Se fomos feito filhos de Deus e irmãos de Cristo, não devemos orar ao nosso irmão (Jesus Cristo), mas ao Pai somente através de Cristo somente. Vejam que ele usa os exemplos de Cristo como advogado. Obviamente a função de Jesus como advogado somente poderia dizer respeito a orações de súplica e intercessão.  E tendo essas orações como pano de fundo, devemos orar ao Pai somente através do único advogado “se dirigirem comigo e através de mim somente ao Pai”. É um ensino totalmente incompatível com o romanismo que estabelece outros advogados, especialmente uma advogada. Toda a argumentação não faria sentido se Orígenes tivesse em mente apenas aquelas orações feitas para louvar e adorar a Deus, afinal ninguém precisa de um advogado para isso. No meu artigo eu trouxe dois estudiosos ortodoxos orientais: John McGuckin e Julia Konstantinovsky. Eles endossam a interpretação aqui defendida:

Orígenes é claro neste trabalho [Sobre a Oração] que a oração deve ser dirigida a Deus Pai somente. (The Handbook Westminster to Orígen [Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 2004]., P 38)

Julia Konstantinovsky, escreveu:

Ele também está muito preocupado com a pergunta: "A quem se deve orar? 'Nos Euches Peri [Sobre a Oração] Orígenes afirma categoricamente que "nunca devemos orar a qualquer coisa gerada, nem mesmo a Cristo" (Peuch 15.1) e que é um 'pecado de ignorância’ orar a Cristo (hamartian idiotiken) (Peuch . 16.1) Em suas obras posteriores, no entanto, Orígenes parece ter mudado essa visão e, certamente, permite que a oração deve ser dirigida diretamente a Cristo (CCels 8,26;. Homex 13,3). (Ibid., pp. 176)

Ela também diz:

Orígenes "muitas vezes" preconiza explicitamente a oração a Cristo. Ele não defendia oração aos mortos. Seu subsídio declarado de oração a Cristo não pode ser usado para justificar um subsídio não declarado de oração para os mortos. Mesmo depois de Orígenes ter mudado sua visão de oração a Cristo, ele continuou a condenar oração a anjos e outros seres criados. (Ibid., pp. 176)

Esses autores são especialistas em história da Igreja com ênfase nos pais orientais (caso de Orígenes). Eles obviamente leram todas as obras de Orígenes disponíveis, inclusive o tratado sobre a oração. Achar que eles simplesmente não sabiam da classificação adotada por Orígenes como afirmou o católico é absurdo. Óbvios que eles estavam cientes e bastava ler com mais atenção toda a obra para entender o que Orígenes queria dizer com oração em sentido estrito. Além de tudo, sendo católicos orientais, eles não têm nenhuma pré-disposição para negar a invocação dos santos num Pai da Igreja, afinal eles servem a uma Igreja que ensina tal doutrina. O currículo da doutora Julia pode ser visto aqui. John McGuckin dispensa apresentação, é considerado um dos maiores teólogos ortodoxos vivos (aqui).  A obra de onde tais citações foram retiradas é de um livro dedicado somente a Orígenes (aqui). O apologista católico traz uma citação que provaria o endosso a invocação dos anjos:

“Não em vão os anjos de Deus ascendem e descem até o Filho do Homem, contemplando os olhos que foram iluminados com a luz do conhecimento. Na própria temporada de oração, portanto, sendo lembrados pelo suplicante de suas necessidadeseles satisfazem-nos já que têm esta capacidade em virtude de sua comissão geral.”  (Orígenes de Alexandria, Tratado sobre a Oração, 11,1-4 [VI na versão online da tertullian.org])

Abaixo trago a citação expandida:

Não em vão, os anjos de Deus, visíveis aos olhos iluminados pela luz do conhecimento, sobem e descem sobre o Filho do homem (João 1:15). Durante a oração, o que ora recorda aos anjos o que necessita e eles satisfazem-no, se podem, pois tem recebido uma ordem universal. As seguintes comparações servem a este propósito para esclarecer o que dizemos. Imagine que um médico desejoso de santidade se aproxima de um homem doente que o chamou para curá-lo. Suponha que o médico saiba como curar a doença do paciente. É óbvio que se inclinará a curar o homem que pede, assumindo, com razão, que Deus assim quer e que ouviu a oração do paciente pedindo a cura de sua doença. Ou imagine que um homem que tem mais do que precisa para viver e é generoso ouve o pedido de um pobre que implora a ajuda de Deus em sua necessidade. É claro que ajudará as necessidades daquele que o pede como instrumento da vontade do Pai. Porque Deus, no tempo da oração, leva aquele pode socorrer as necessidades e que por sua generosidade não se recusa a fazê-lo, guia-o e coloca o mesmo no lugar onde o que pede ajuda é encontrado. Devemos pensar que, quando coisas como essas acontecem, não acontecem aleatoriamente. Aquele que tem "contados os cabelos da cabeça" nos santos (Mt 10:30, Lc 12:7) faz coincidir no tempo da oração aquele servirá como um instrumento para atender a boa obra que o outro vinha pedindo com confiança. Assim, podemos pensar que os anjos foram encarregados para cuidar de nós como os ministros de Deus que favorecem aquele que ora juntando-se sua petição. O anjo de cada um, mesmo dos mais "pequenos" na Igreja, "contempla sempre o rosto do Pai que está nos céus" (Mt 18:10) e vê a divindade daquele que nos criou. Ele reza conosco e faz tudo o que pode para cooperar conosco no que pedimos. (11:4-5)

Primeiramente, a citação não afirma que os crentes se dirigem em oração aos anjos – o que tornaria Orígenes uma espécie de bipolar pois ele repetidamente afirma que apenas Deus deve ser o destinatário. A citação afirma que os crentes recordam/lembram os anjos de suas necessidades na medida em que oram. Isso não implica que a oração é direcionada ao anjo. Nas duas obras aqui discutidas (Tratado sobre a Oração e Contra Celso), Orígenes afirma que quando oramos a Deus, os anjos se tornam favoráveis a nós. Os anjos seriam agentes da providência divina, sendo os instrumentos de Deus para responder as orações. Segundo ele, os anjos podem ouvir nossas orações, tanto é que eles orariam conosco ainda que não os invocássemos. Dessa forma, é verdade que informamos aos anjos sobre nossas petições quando oramos, pois, eles têm poderes que os homens não têm e poderiam ouvir as orações, todavia não devemos orar a eles. Essa interpretação é consistente com a continuação da citação. Orígenes faz duas analogias – o médico e o homem generoso. Em ambas, o necessitado ora a Deus e não aos homens. Todavia, em ambas ele é socorrido por esses homens. O ponto é que Deus providencialmente faz com que a oração coincida com a presença daqueles que podem socorrer. O próprio apologista trouxe o cap. 11 onde Orígenes trata de passagens do apócrifo de Tobias em que os personagens oram a Deus e são socorridos pelo anjo Rafael. Ainda trago a citação abaixo, que embora utilizada pelo apologista católico, só vem a favorecer a posição defendida neste artigo:

Existe só o Deus supremo cujo favor se deve procurar e a quem se deve pedir que seja propício, buscando sua graça pela piedade e por todas as virtudes. E se Celso quiser, depois do Deus supremo, tornar propícios outros protetores, deve compreender que, como o corpo que se desloca é seguido pelo movimento e sua sombra, da mesma forma o favor do Deus supremo atrai a benevolência de todos os que o amam: anjos, almas, espíritos. Eles conhecem os que merecem o favor de Deus, e não contentes em conceder sua benevolência aos que têm este mérito, colaboram com os que querem prestar culto ao Deus supremo; cheios de benevolência, com eles oram e intercedem. Em consequência disso ousamos dizer: quando os homens aspiram de todo coração aos melhores bens e oferecem a Deus sua oração, uma multidão de santos poderes, mesmo sem serem invocados, oram com eles e assistem nossa raça perecível. (Contra Celso 8:64)

Interessa observar que o apologista está usando a tradução da Editora Católica Paulus, mas no trecho “mesmo sem serem invocados”, ele modifica a tradução para “mesmo quando não invocados”. Obviamente ele quis favorecer a ideia de que os santos/anjos são invocados. Ocorre que mesmo na tradução da Paulus, a ideia é de não invocação. O argumento de Orígenes é que não é preciso invocá-los para que eles sejam propícios a nós. Basta invocar a Deus que os anjos automaticamente se tornam favoráveis aos que oram. Orígenes respondia a crítica de Celso segundo o qual os cristãos não pediam o favor de outros homens, mas apenas de seu Deus. O argumento de Orígenes é de que basta orar a Deus, que todo o resto se torna favorável segundo a providência divina. Dessa forma, ao afirmar que anjos ouvem nossas orações e nos socorrem, esse autor não está sugerindo orar a eles. Pelo contrário, está sugerindo orar àquele que providencialmente faz com que os anjos venham ao socorro do que ora.

O argumento católico falha também por não considerar as citações da obra “Contra Celso”. Ele não lidou com essas citações e apenas presume que sempre que Orígenes mencionava orar somente a Deus, estava se referindo a um tipo específico de oração. Vimos que mesmo no Tratado sobre a Oração, essa interpretação não resiste ao contexto. Quando analisamos a obra “Contra Celso” fica mais claro ainda que Orígenes se referia ao que modernamente entendemos como oração:

Em seguida, como se judeus e cristãos tivessem respondido que aqueles que descem até os homens são anjos, ele responde: Se falais de anjos, dizei-nos quem são eles: deuses ou seres de uma outra espécie? E, supondo nossa resposta, ele [Celso] acrescenta: — De uma outra espécie, demônios, sem dúvida. Pois bem! Vamos esclarecer este ponto. De comum acordo dizemos que os anjos são “espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação” (Hb 1,14). Eles sobem para levar as súplicas dos homens às regiões celestes mais puras do mundo, ou mesmo às supracelestes mais puras do que aquelas. Em seguida, eles descem de lá para levar a cada um conforme seu mérito uma das graças que Deus ordena dispensar àqueles que recebem seus favores. Portanto, aqueles que aprendemos a chamar de anjos por causa de sua função, nós os encontramos às vezes também nas escrituras sagradas com o nome de deuses, porque são divinos; mas eles não o são a ponto de sermos obrigados a venerar e adorar, em lugar de Deus, aqueles que nos dispensam e nos trazem as graças de Deus. Pois é preciso elevar todo pedido, prece, súplica e ação de graças ao Deus supremo através do sumo sacerdote que está acima de todos os anjos, o Logos vivo de Deus. E ofereceremos ao próprio logos pedidos, preces, ações de graças, e mesmo súplicas, se formos capazes de discernir entre o sentido absoluto e o sentido relativo da palavra “súplica”. Pois invocar os anjos sem ter recebido a seu respeito uma ciência que ultrapassa o homem não é razoável. Mas suponhamos, por hipótese, que tenhamos recebido esta ciência maravilhosa e misteriosa: esta ciência em si mesma leva ao conhecimento da natureza dos anjos e dos ofícios confiados a cada um deles e não permitirá que ousemos orar a qualquer pessoa a não ser ao próprio Deus supremo, que a tudo pode satisfazer perfeitamente, por meio de nosso salvador, o Filho de Deus, que é logos, sabedoria, verdade e tudo o que dele afirmam as escrituras dos profetas de Deus e dos apóstolos de Jesus. Para tornar os santos anjos de Deus propícios a nós e levá-los a fazer tudo por nós, basta, enquanto possível à natureza humana, imitar em nossa atitude com Deus a disposição pessoal deles, pois imitam a Deus; e a concepção que temos de seu Filho o Logos, enquanto possível, em vez de contradizer a concepção mais clara que dele têm os santos anjos, se aproxima dela a cada dia em clareza e nitidez. Como se jamais tivesse lido nossas escrituras sagradas, Celso dá a si mesmo uma resposta que ele nos atribui: segundo o que afirmamos, os anjos que descem de junto de Deus para fazer o bem aos homens são de uma outra espécie, e, em nossa opinião, são demônios sem dúvida. Celso não percebe que o nome “demônios” não é um termo indiferente como o nome “homens”, entre os quais existem bons e maus, nem um termo nobre como “deuses”, que não é aplicado aos demônios maus, às estátuas, aos animais, mas é dado por aqueles que são instruídos sobre as coisas divinas aos seres verdadeiramente divinos e felizes. (Contra Celso 5:4-6)

Primeiro, Celso usava o termo “demônios” de forma distinta do uso moderno. Ele o usava para se referir a espíritos em geral, inclusive a anjos. Orígenes condena o uso equivocado do termo por Celso e afirma que anjos não poderiam ser chamados de demônios. Tenha em isso em mente quando Celso critica os cristãos por não invocarem demônios. Ele não tem em mente somente seres malignos, mas seres espirituais em geral como os anjos. Segundo, Orígenes estabelece a função dos anjos como agentes da providência divina que levam nossas orações a Deus e distribuem as recompensas do Pai, mas é claríssimo no sentido de que não devemos invocá-los: “Pois é preciso elevar todo pedido, prece, súplica e ação de graças ao Deus supremo através do sumo sacerdote que está acima de todos os anjos, o logos vivo de Deus”. Veja como o argumento católico é mais uma vez refutado. Não é apenas um tipo específico de oração, mas TODA prece, súplica, pedido e ação de graças deve ser feita a Deus através de Jesus. De forma a não deixar dúvidas, Orígenes afirma que invocar os anjos sem ter conhecimento de sua natureza (caso de Celso) não é razoável. Isso então quer dizer que caso tenhamos ciência da natureza dos anjos, poderíamos orar a eles? Obviamente não. Orígenes logo responde: “Mas suponhamos, por hipótese, que tenhamos recebido esta ciência maravilhosa e misteriosa: esta ciência em si mesma leva ao conhecimento da natureza dos anjos e dos ofícios confiados a cada um deles e não permitirá que ousemos orar a qualquer pessoa a não ser ao próprio Deus supremo, que a tudo pode satisfazer perfeitamente, por meio de nosso salvador, o Filho de Deus”. Se entendermos a natureza dos anjos – de que eles são agentes da providência de Deus – entenderemos mais perfeitamente que devemos orar somente a Deus. Todo o argumento é construído para dizer que não devemos orar aos anjos, mas somente ao Pai através do Filho. A crítica de Celso aos cristãos por não orarem aos demônios (aqui inclusos anjos e outros seres) e a respectiva resposta de Orígenes podem ser verificas no seguinte trecho:

Celso, aqui, afirma que os demônios pertencem a Deus e que, por esta razão, é preciso acreditar neles e lhes oferecer segundo as leis sacrifícios e orações a fim de os tornar propícios (...) Desprezemos então o conselho de Celso segundo o qual é preciso orar aos demônios; ele não merece a menor atenção. É preciso orar ao Deus supremo único, e também ao Logos de Deus, seu Filho único, Primogênito de toda criatura, e pedir-lhe, como Sumo Sacerdote, que leve nossa prece, uma vez recebida, até ao seu Deus e nosso Deus, seu Pai e o Pai dos que vivem segundo o Logos de Deus. (Contra Celso 8:26)

Orígenes continua a ensinar que a oração deve ser direcionada a Deus. Tendo em mente que Celso incluía os anjos no termo “demônios”, caso a objeção de Orígenes fosse apenas orar para o “anjo errado”, ele certamente defenderia tal prática neste contexto. Ele não somente rejeita a crítica de Celso como corrige o ensino pagão direcionando todos a orarem a Deus. Em outros trechos, ele é mais enfático quanto ao destinatário das orações:

Se Celso tivesse examinado e compreendido isto, não nos teria acusado de ignorância, nem proibido de tratar como cegos os que veem uma expressão da piedade nas obras materiais da arte humana como são as estátuas. Pois todo o que abre os olhos da alma não segue outro método para adorar a divindade a não ser o que ensina a sempre ter os olhos fixos no Criador do universo, em lhe oferecer toda prece e em fazer tudo sob os olhos de Deus, que enxerga até nossos pensamentos. (Contra Celso 6:51)

Os cristãos chamavam os pagãos que cultuavam estátuas de cegos. Celso acusa os cristãos de serem ignorantes. Orígenes responde que eles eram mesmos cegos e que os cristãos tinham os olhos voltados para o verdadeiro Deus a quem dirigiam não apenas algumas preces, mas TODAS as preces. Essa é a tradução da editora Paulus, mas a versão hospedada no site católico New Advent (edição do Philip Shcaff) é mais enfática (aqui): “dirigir suas orações a ele somente”. Orígenes não restringe a oração aqui a um tipo específico. Ele o faz em sua forma genérica da mesma forma que a prática pagã que ele condena. A crítica de Orígenes aos pagãos seria extremamente hipócrita caso pertencesse a uma religião que ora para milhares de outros seres além de Deus. O alexandrino diz que não deveremos orar a seres criados, mas somente a Deus:

É apenas compreender a divindade de Deus que tudo ultrapassa com indizível superioridade, e a do Filho de Deus único que ultrapassa tudo mais. E quando estamos persuadidos de que o sol, a lua e as estrelas oram ao Deus supremo por meio de seu Filho único, julgamos que não devemos orar aos seres que oram: eles mesmos preferem nos remeter ao Deus a quem eles oram, e não nos abaixar até eles ou partilhar de nosso poder de oração entre Deus e eles mesmos. (Contra Celso 5:11)

Em resumo, Orígenes acreditava que os crentes falecidos oravam pela Igreja na terra. Também acreditava que os anjos ouvem nossas orações, as levam para Deus e distribuem as recompensas do Pai, mas foi de forma insistente contrário a invocação de santos e anjos. O crítico pagão a quem ele respondia também não tinha qualquer noção de que orar a falecidos e anjos fosse uma prática cristã. As tentativas católicas de fazer de Orígenes testemunha da doutrina romana são inócuas. Chegam ao ponto de defender que Orígenes ensinava que devemos fazer orações a homens pagãos (um absurdo). Isso põe a doutrina católica em duplo descrédito - Orígenes foi o primeiro pai da Igreja a dizer que os crentes no céu oram pela Igreja. Dado que ele viveu no séc. III, é muito tardio para provar que essa era doutrina da Igreja desde os apóstolos. Ainda assim, não há qualquer sugestão de que isso fosse uma doutrina. Romanistas frequentemente pegam qualquer opinião de um Pai da Igreja e afirmam que era a doutrina da Igreja (isso é especialmente frequente no caso da virgindade perpétua de Maria). Ademais, o alexandrino foi contrário às orações direcionadas a santos e anjos, o que por si só demonstra que a doutrina romana não era uma doutrina da Igreja do séc. III. 

2 comentários:

  1. Bom artigo, seu site é muito bom , tem você publicar com mais frequência

    Que mmateriais e livros você indicariam sobre patristica ,igreja primitiva e formação da bíblia?

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    1. Olá Otavio,

      Eu pensei em dar um resposta rápida, mas prefiro fazer um postagem com a bibliografia recomendada. Farei isso nos próximos dias com os respectivos links para compra dos livros. Eu diria que há uma lista de pelo menos 30 livros muito úteis.

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